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Charlatanismo magnético

Esta postagem trata de uma forma de charlatanismo que antecede em muito as picaretagens quânticas.

Respondido por: Prof. Fernando Kokubun (FURG) - https://www.fisicaseteemeia.com.br/2021/

O magnetismo é conhecido possivelmente faz mais de 2 mil anos, encontramos por exemplo no livro De Anima (cerca de 350 AC) de Aristóteles (384 AC-322 AC), citações a trabalhos de Tales de Mileto (624 AC-548 AC) a respeito do magnetismo. E como um ramo da ciência podemos estabelecer seu início com Willian Gilbert (1544 – 1603), que entre outras coisas foi o primeiro a considerar a Terra como um grande imã.  Mas apenas no século XIX, com os trabalhos principalmente de André Marie Ampere (1775-1836), Michael Faraday (1791-1867), Hans Christian Oersted (1777-1851) e James Clerk Maxwell (1831-1879) foi possível construir uma teoria consistente, mostrando que a eletricidade e o magnetismo são fenômenos relacionados, originando a disciplina do eletromagnetismo.

Mas o magnetismo também atraiu (sem a intenção de fazer um trocadilho) e continua atraindo um grande número de pessoas com visões no mínimo equivocadas sobre o tema. E infelizmente, na área de saúde, a presença destes mercadores de ilusões ainda é bem forte. Visões equivocadas, possivelmente tendo origem nos trabalhos de Paracelso (1493-1541) e Franz Anton Mesmer (1734-1815), ainda continuam presentes na atualidade, a única diferença é de que adotaram uma linguagem mais moderna.

Antes de continuar, é importante deixar claro que existem aplicações do magnetismo que são importantes para a saúde, por exemplo os equipamentos de ressonância magnética para obtenção de imagens (estima-se que cerca de algumas dezenas de milhões de ressonâncias são realizadas anualmente no mundo todo [1]). E existem alguns outros estudos sobre aplicações do magnetismo no tratamento e/ou diagnóstico de doenças, sendo realizadas de maneira séria e cuidadosa. Não são estes que vamos tratar neste texto.

Uma rápida busca na internet sobre magnetismo e saúde, nos remete a coisas como “o magnetismo melhora o pH do sangue”, “magnetismo e a cura do câncer” e até “magnetismo e a Covid-19” [2], além das vendas de pulseiras magnéticas, colchões magnéticos e muitas outras coisas que prometem verdadeiros milagres. E uma das justificativas é de que o campo magnético ajudaria a alinhar as substâncias presentes no organismo, permitindo um fluxo mais ordenado, resultando em um melhor equilíbrio no organismo. Será?

Bem, para isto precisamos ter algumas noções de grandezas dos campos magnéticos. O da Terra é da ordem de 0,00005 teslas, de um imã da geladeira 0,001 teslas, das pulseiras magnéticas cerca de 0,01 a 0,2 teslas e os aparelhos de ressonância magnética, os mais comuns estão na faixa de 1 a 4 teslas.  Tesla é a unidade de medida no Sistema Internacional de Unidades; outra unidade muito utilizada é o gauss, sendo que 1 tesla=10000 gauss (nas pulseiras magnéticas, os anúncios costumam expressar em gauss, possivelmente por impressionar mais ao escrever 2000 gauss do que 0,2 teslas). Comparativamente as pulseiras tem campos bem maiores que o da Terra, e dos imãs de geladeira, mas são menores do que a dos aparelhos de ressonância magnética.

Antes de entrarmos em uma descrição mais detalhada, podemos   realizar um experimento bem simples, para entender que além da força magnética, e a relação entre ela e outras forças que atuam no corpo, que vai determinar qual é a mais importante.  Pegue um imã e grude em um local metálico. Nesta situação a força peso é menor que a força que surgem no sistema devido ao campo magnético do ímã. Agora coloque uma folha de papel entre o ímã e o metal, verifique se continua grudando (possivelmente continuará grudando). Agora acrescente mais uma folha e repita o procedimento. Continue até o momento em que o ímã não consegue mais ficar grudado.   Dependendo do imã, com uma camada de papel com espessura entre alguns milímetros (para os ímãs de geladeira) até cerca 1 cm (para ímãs de neodímio pequenos), você vai notar que o ímã não vai ficar grudado no metal! Isto significa que a força devido a interação do ímã com a geladeira não é suficiente para compensar a força peso do ímã. Mas é importante lembrar que o papel não blinda o campo magnético, ele foi utilizado apenas para introduzir uma noção qualitativa de como o campo magnético diminui rapidamente com a distância. Como verificar se o campo magnético não foi blindado? Aproxime uma bússola e vai verificar que o campo magnético está presente, mesmo com as folhas de papel entre o imã e a bússola. Este experimento simples serve para mostrar que a força de interação do campo magnético dos ímãs permanentes com os objetos diminui rapidamente com a distância. O campo magnético também diminui com a distância, mas para medir o seu comportamento com a distância, precisamos de um equipamento específico, enquanto este simples experimento nos permite verificar esta variação de forma qualitativa de forma bem simples. Será que o campo produzido por uma pulseira vai ter algum efeito no corpo humano? Muito improvável!

Você pode argumentar que no corpo humano o campo magnético vai atuar nas células do organismo, e como suas massas são muito menores, o nosso experimento comparando com o peso não teria sentido! Pensamento justo! Seria possível comparar a força exercida por um campo magnético, digamos na hemoglobina (mais adiante explico a razão desta escolha) com a força peso na mesma hemoglobina? A resposta é sim, podemos fazer uma estimativa muito boa. Esta estimativa e outras podem ser encontradas em [3], onde o autor analisou eventuais impactos do uso de aparelhos de ressonância magnética no corpo humano. Vamos apresentar dois destes resultados.

Mas antes, é importante entender como um campo magnético de um ímã interage com os objetos. Dependendo do material, o comportamento vai ser diferente, e isto quem já brincou com um ímã sabe por experiência: em alguns o ímã gruda em outros não. Por que isto ocorre? E o que gera um campo magnético?  Um campo magnético é gerado sempre que alguma carga elétrica está em movimento. Um exemplo desta aplicação são os eletroímãs, que pode ser construído facilmente em casa.

Ao contrário dos imãs permanentes, um eletroímã somente gera um campo magnético quando uma corrente elétrica circular no sistema. Isto permite ligar e desligar o campo magnético de maneira relativamente simples, o que não é possível com os ímãs permanentes.

De uma maneira simplificada, podemos dizer que nos átomos temos cargas elétricas em movimento, e isto faz com que comportem como ímãs minúsculos, que vamos denominar de ímãs elementares [4]. Para a maioria dos materiais, as orientações destes ímãs elementares são desordenadas (ou aleatórias) de forma que na média o material como um todo possui um campo magnético nulo. Mas em alguns materiais estes ímãs elementares podem ter um alinhamento menos desordenado, e o campo magnético gerado não é nulo. É o que ocorre com os ímãs permanentes.

Mas mesmo que o objeto não tenha um campo magnético permanente, ele pode sofrer influências de um campo magnético externo.  Nestes casos existem diferentes tipos de comportamento, um que é atraído pelo campo magnético e outro comportamento no qual o objeto é repelido pelo campo magnético. Estes materiais são denominados materiais paramagnéticos e   materiais diamagnéticos, respectivamente. Estes dois tipos de materiais interagem mais fracamente com um campo magnético. Os materiais que tem a maior interação com o campo magnético, pertencem à categoria de materiais ferromagnéticos, e os ímãs permanentes são construídos com estes materiais.  Os diferentes constituintes do nosso organismo, possuem comportamentos magnéticos diferentes, e a intensidade como respondem a um campo externo são diferentes. Além dos materiais magnéticos, no nosso organismo temos íons, que por possuem carga elétrica, e estas cargas em movimento são também afetados por um campo magnético externo. Mas será que um campo magnético de um imã seria suficiente para causar movimentos diferenciados entre estes constituintes, e causar algum dano ou modificações no funcionamento do nosso organismo? Bem, esta é a hipótese das chamadas terapias magnéticas.

Quando analisamos os efeitos de um campo magnético considerando as propriedades magnéticas dos constituintes biológicos (sejam como ímãs elementares, ou íons em movimento), podemos estimar as forças, os torques e as energias envolvidas nestes processos de interação do campo magnético com estes constituintes. Este tipo de estudo é importante para que seja possível entender os limites de segurança na utilização dos aparelhos de ressonância magnética (ver por exemplo a referência [3])

Como inicialmente consideramos uma relação do peso com a força magnética, vamos considerar o efeito em uma célula de hemoglobina, presente nas hemácias (as células do sangue).   O comportamento magnético do plasma em relação à hemoglobina é diferente, sendo que a hemoglobina sofre mais a força do campo magnético do que o plasma. Isto porque a hemoglobina contém ferro, que é um material ferromagnético. Quando comparamos a força magnética   e a força peso, na presença de um campo magnético de 4 tesla (portanto muito maior do que a das pulseiras terapêuticas) na hemoglobina, a força magnética é cerca de 3% da força peso (estes dados podem ser conferidos na referência [3]). E a força peso NÃO é a mais intensa exercida na hemoglobina. Se fosse a força predominante teríamos mais hemoglobina nos pés do que no resto do corpo, o que não é verificado. As forças que existem na corrente sanguínea, são muito maiores que a força peso que atua nas hemoglobinas.  (Atenção, isto não implica que a gravidade não tem importância para a circulação sanguínea, pois estudos em situações de microgravidade indicam que existem efeitos mensuráveis [5], mas aqui na Terra não estamos em microgravidade.) Como a força magnética de um campo magnético de 4 teslas é menor que a força peso, a sua influência para a dinâmica da hemoglobina é assim desprezível.

Talvez você tenha preferência sobre o efeito na água, afinal temos muita água em nosso organismo.  Como a água não é ferromagnética não podemos utilizar o resultado acima, a água tem propriedades diamagnéticas. Mas podemos comparar uma outra grandeza, a energia que o campo magnético transfere para a água, e comparar esta energia com a energia média nas moléculas de água devido a agitação térmica. Hoje sabemos que a temperatura de um corpo está relacionado com a energia cinética média das partículas do sistema, e isto nos permite associar a temperatura com a energia cinética das moléculas da água em nosso organismo. Para que seja efetivo, a energia transferida pelo campo magnético tem que ser maior (ou pelo menos da mesma ordem de grandeza) que a energia média das moléculas de água presentes no corpo humano. Quando realizamos esta comparação, para o campo de 4 tesla a energia transferida devido ao campo magnético é cerca de 0,00000001 vezes (10 dividido por 1 bilhão) a energia térmica das moléculas de água. Novamente um valor desprezível!

Os valores acima foram obtidos para o caso de um campo de 4 teslas, que é muito maior do que o encontrado nas pulseiras terapêuticas, logo para as pulseiras os efeitos são muito menores! Portanto, utilizando os conhecimentos da física, é possível mostrar que os efeitos de um campo magnético devido as pulseiras terapêuticas no corpo humano são completamente desprezíveis, de forma que não tem a mínima influência na melhora da saúde das pessoas (se tiver interesse para outras situações além dos tratados aqui, recomendo a referência [3]). Ressaltamos que os conceitos físicos utilizados são bem robustos e testados em diferentes situações, e em algumas em situações muito mais extremas do que as encontradas no corpo humano [6].

Uma vantagem é que estas pulseiras não causam nenhum dano para a saúde, portanto a sua utilização também não causa nenhum maléfico, exceto para seu bolso.

 

[1] Para dados por exemplo da OCDE , para o Brasil ver  ANS , ver também a referência [3].

[2] No período da pandemia, com o início das vacinações, corria um boato de que as vacinas tinham propriedades magnéticas. Este tema pode ser lido em https://cref.if.ufrgs.br/?contact-pergunta=a-vacina-e-magnetica-sera-mesmo  onde tratei com o Fernando Lang as falsas notícias sobre as vacinas magnéticas.

[3] J. F. Schenck, Safety of Strong, Static Magnetic Fields  ,J Magn Reson Imaging, v12, 2-19, 2000.

[4] Não vamos falar aqui de spin, mas quem estiver interessado em estudar de maneira mais aprofundada as questões relacionadas com o magnetismo, recomendo procurar mais detalhes sobre a relação entre o spin e o magnetismo (spin é uma propriedade que não tem um análogo simples na física clássica. Não é neste caso adequado traduzir spin por giro, pois vai gerar mais confusões do que o necessário)

[5]  Para estudos com astronautas em ambiente de microgravidade, veja por exemplo este artigo de 2019.

[6] Existem estudos in vitro, isto é em condições laboratoriais muito específicas, onde é possível detectar os efeitos do campo magnético por exemplo nas hemoglobinas. Mas nenhum estudo robusto e metodologicamente correto realizado in vivo comprovam estes efeitos.


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