A origem do azul do mar
2 de janeiro, 2023 às 18:20 | Postado em Óptica
Respondido por: Prof. Carlos Alberto dos Santos - IF-UFRGSO azul do mar é apenas reflexo do céu na água?
Na segunda metade do século 19, o Lord Rayleigh explicou o azul do céu a partir dos seus estudos sobre o espalhamento da luz solar por pequenas partículas na atmosfera terrestre. Na sequência desses estudos, Rayleigh supôs que esse fenômeno não ocorria nos mares, de modo que a cor azul do mar era simplesmente o reflexo do azul do céu.
Meio século depois, o físico indiano Sir Chandrashekhara Venkata Raman mostrou que Rayleigh estava errado. O azul do mar também tem a ver com o espalhamento da luz, mas através de um mecanismo diferente daquele descoberto pelo Lorde inglês para o azul do céu.
Raman começou a pensar no problema em 1921, durante uma viagem de navio da Inglaterra para a Índia. Ficou encantado com o azul profundo do mar mediterrâneo. A história que se seguiu a esse deslumbramento é fascinante, e vale a pena compartilhar, ainda mais porque a espectroscopia Raman que resultou desses estudos foi usada, nos anos 1970, por alguns dos primeiros professores do Departamento de Física da UFRN em seus estudos de pós-graduação na Unicamp, e em meados dos anos 1980 um espectrômetro Raman foi adquirido pelo Departamento de Química.
Na arte, na poesia, na literatura, na política, e na ciência muita coisa muda dependendo do ponto de vista. Rayleigh explicou o azul do céu pelo espalhamento da luz em atmosfera gasosa, mas errou quando supôs que não havia espalhamento da luz solar na água. Raman o corrigiu quando decidiu estudar experimentalmente o espalhamento da luz na água. Fez isso com uma dezena de colaboradores, com os quais estendeu os estudos para materiais de qualquer natureza. Foi assim que nasceu o efeito Raman e a espectroscopia Raman.
Assim como na descoberta dos raios-X (1895) e da radioatividade (1896), os estudos de Raman fizeram vir à tona uma nova radiação, que ele apresentou em público pela primeira vez em 1928. Para colocar em contexto, convém lembrar que as radiações às quais estamos mais habituados são a eletromagnética (luz visível, raios-X, raios gama, ultravioleta, infravermelho), e a nuclear (raios alfa e beta). Algumas dessas radiações eletromagnéticas primárias surgem quando materiais são aquecidos ou bombardeados com um feixe de elétrons. A radiação nuclear é produzida por processos muito complexos no interior do núcleo. Não vale a pena entrar nesse detalhe. Basta dizer que é um tipo de radiação produzida apenas por alguns materiais, conhecidos como materiais radioativos.
Agora, o que Raman descobriu foi um novo tipo de radiação, que ele classificou como secundária, emitida quando os materiais são intensamente iluminados com luz visível. O azul do céu, explicado por Rayleigh é uma radiação secundária resultante do espalhamento da luz solar pelas pequenas partículas dispersas na atmosfera terrestre. Já o azul do mar resulta do espalhamento da luz por moléculas de materiais líquidos. É diferente do espalhamento Rayleigh. Usando a linguagem da teoria quântica, que naquele momento atravessava um turbilhão de criatividade gerado por inúmeros pesquisadores que se dedicavam ao tema da moda naquela década de 1920, Raman fez uma bela e elegante descrição do fenômeno que ele e seus colaboradores estavam observando pela primeira vez.
Para melhor apreciar o que foi feito, convém fazermos um breve parêntese. Esses painéis solares que todos conhecem, funcionam por causa do efeito fotoelétrico, descoberto nos anos 1880, mas explicado só em 1905, quando Einstein propôs a teoria corpuscular da luz. Quando um fóton, o corpúsculo que compõe a luz, interage com determinados materiais, ele fornece toda sua energia para um elétron que em seguida será liberado pelo material. São os elétrons liberados os responsáveis pela energia que extraímos dos painéis solares.
No caso do efeito Raman, a situação é um pouco diferente. Em primeiro lugar, o fóton não fornece toda sua energia para uma molécula de água. Uma parte da energia é absorvida pela molécula, e outra parte é espalhada. Em segundo lugar, alguns fótons são liberados com energia maior do que a do fóton incidente.
Isso não lhe parece uma violação do princípio da conservação da energia? Parece, mas não é! A solução do aparente paradoxo está no efeito Raman. A molécula fornece um pouco de sua energia de vibração ao fóton espalhado, que sai zanzando com mais energia do que deveria, de acordo com o que pontificavam todas as teorias físicas até então conhecidas. Então, a maioria dos fótons sai com energia menor do que a do fóton incidente, mas alguns saem com energia maior do que a do fóton incidente. São esses que dão a cor azul do mar.
O fóton ganhou energia, e Raman, o Nobel de 1930!
ADICIONADO EM 16/02/2023
Excelente resposta, muito bem escrita e estruturada!
Se interessar a alguém, o artigo do Raman de 1922 pode ser lido em https://royalsocietypublishing.org/doi/pdf/10.1098/rspa.1922.0025
Sensacional o artigo, Fernando! Parabéns, Carlos Alberto!
A propósito, recentemente teve esse achado sobre espalhamento da luz e o princípio da exclusão de Pauli que pode interessar, muito legal:
https://www.sciencenews.org/article/quantum-physics-atom-light-pauli-exclusion-principle
Feliz Ano Novo aos colegas!
Um ótimo 2023 para todos nós!
O artigo é muito interessante, mas faltou explicar com maior clareza a origem do azul do mar na condição em que é iluminado pelo sol. De fato, essa questão fascinou o físico índiano C. V. Raman, e ele dedica a esse assunto um artigo na Proceedings of the Royal Society intitulado “On the molecular scattering of light in water and the colour of the sea”. No artigo, Raman argumenta que o azul vem do espalhamento das moléculas e não da reflexão da luz do Céu, como acreditavam muitos físicos importantes da época. Porém, cabe destacar que esse espalhamento das moléculas da água não é propriamente o “espalhamento Raman”, mas um espalhamento elástico, que não altera o comprimento de onda, tendo apenas seletividade com o comprimento de onda. Esse estudo pode ter motivado Raman a descobrir o espalhamento inelástico da luz, mas o azul do mar não está relacionado com o espalhamento inelástico que recebeu seu nome.
Abaixo se encontra a resposta do autor da postagem.
Another kind of secondary radiation whose existence has been experimentally
recognized more recently is the scattering of light by atoms and molecules. It is
this scattering that gives us the light of the sky, the blue colour of the deep sea and the delicate opalescence of large masses of clear ice. I have here a large bottle of a very clear and transparent liquid, toluene, which as you notice contains hardly any dust-particles, but the track of the beam from the lantern passing through it is visible as a brilliant blue cone of light. (…) it arises from inelastic collisions of the second kind within the liquid resulting in partial transformation of the incident quantum of radiation into translatory kinetic energy of the molecules. [C.V. Raman. A new radiation. Indian J. Phys. 2 387-398 (1928)].