X

Outra vez o mau uso do Teorema Trabalho Energia Cinética

Professor Lang

Eu expliquei hoje numa apresentação o que o senhor falou nesse texto – Trabalho da força de atrito e variação de energia cinética, mas recebi questionamentos do professor e colegas de classe aos quais não pude responder adequadamente.

Eles discordaram da ideia de que a força de atrito não realiza trabalho algum, mesmo que não haja deslizamento da sola do pé.

Utilizando a segunda lei de Newton, que nos diz que a aceleração do centro de massa do sistema (neste caso o corpo da pessoa) é igual a força externa resultante dividida pela massa, chegamos a versão do teorema trabalho-energia cinética que mostra que a variação da energia cinética do centro de massa do sistema (ou seja, a variação da energia cinética de translação do sistema) é igual ao trabalho da força resultante sobre o sistema.

Ora, a força externa resultante sobre o sistema neste caso é o atrito. Como conciliar isso com a explicação que o senhor deu para a força de atrito não fazer trabalho, já que a força de atrito só age na região de contato do sistema (a pessoa) com o chão, sendo tal região de contato a sola do pé, que não desliza, não havendo portanto deslocamento onde a força de atrito age, e assim não havendo trabalho?

Respondido por: Prof. Fernando Lang da Silveira - IF-UFRGS

O primeiro aspecto dessa situação  é  que não deveria haver dúvida de que se a força de atrito estático não se desloca enquanto o caminhante se move em relação à pista (chão, superfície sobre a qual o caminhante se move) e, portanto, decorre trivialmente da definição de trabalho que não acontece trabalho pela força de atrito em relação à pista.

Agora vou analisar o que segue: Utilizando a segunda lei de Newton, que nos diz que a aceleração do centro de massa do sistema (neste caso o corpo da pessoa) é igual a força externa resultante dividida pela massa, chegamos a versão do teorema trabalho-energia cinética que mostra que a variação da energia cinética do centro de massa do sistema (ou seja, a variação da energia cinética de translação do sistema) é igual ao trabalho da força resultante sobre o sistema.

O Teorema Trabalho-Energia Cinética (TTEC), enunciado como “o trabalho da resultante das forças sobre um corpo é igual à variação da energia cinética desse corposomente é aplicável  para um corpo rígido em puro movimento de translação (ou para uma partícula) . Usualmente em uma disciplina de Mecânica em nível de Física Geral o TTEC é deduzido para uma partícula e, portanto, todas as forças possuem o mesmo ponto de aplicação e  quando a partícula se desloca, todas as forças apresentam obviamente o mesmo deslocamento.

Então é importante destacar que na dedução do TTEC há o pressuposto de que todas as forças exercidas na partícula (ou em um corpo extenso) tenham o mesmo deslocamento, isto é, que todas as forças se desloquem pela mesma distância, na mesma direção e no mesmo sentido.

Um caso simples em que o TTEC é notoriamente inválido diz respeito a uma haste rígida, inicialmente em repouso, sobre o qual são exercidas apenas duas forças de mesma intensidade e direção mas com sentidos contrários, ou seja, de uma haste sob um binário de forças conforme representado na figura 1.

A haste descreverá um movimento de rotação em torno de seu centro de massa e o centro de massa não se deslocará. A resultante das forças é nula, portanto o trabalho da resultante é nulo, mas cada uma das forças realiza trabalho e haste ganhará energia cinética (de rotação).

Uma forma menos restritiva do TTEC aplicável para corpos rígidos em rotação e translação é: “o trabalho total (somatório dos trabalhos) sobre um corpo é igual à variação da energia cinética desse corpo“.  Note-se que o trabalho total e o trabalho da resultante das forças são diferentes caso os deslocamentos das forças não sejam todos iguais.

Uma circunstância em que mesmo na versão menos restritiva o TTEC é inválido, graças aos trabalhos internos em um sistema de massa variável  que não são convertidos integralmente em energia cinética, está discutido em  Mecânica – Trabalho na esteira transportadora.

Desta forma, conhecer os limites de validade do TTEC é importante pois do contrário poderemos usá-lo em situações em que de fato não é possível sua aplicação. Aqui um caso do mau uso do TTEC semelhante ao que motivou esta postagem:  Questão 67 sobre a corrida do Usain Bolt – Prova Branca – ENEM2015.

Finalmente indico uma dissertação de mestrado profissional em ensino de Física da UFRJ que trata das limitações do TTEC. Na dissertação é discutido o Teorema do Pseudotrabalho (Teorema do Centro de Massa) que está referido acima como “versão do teorema trabalho-energia cinética que mostra que a variação da energia cinética do centro de massa do sistema (ou seja, a variação da energia cinética de translação do sistema) é igual ao trabalho da força resultante sobre o sistema”. 

Dissertação do MPEF-UFRJ: TRABALHO E ENERGIA: UMA NOVA ABORDAGEM SOBRE A TRANSFORMAÇÃO E CONSERVAÇÃO DE ENERGIA.

Outras postagens no Pergunte ao CREF sobre este tema estão acessíveis em Teorema Trabalho-Energia Cinética.

Docendo discimus.” (Sêneca)


3 comentários em “Outra vez o mau uso do Teorema Trabalho Energia Cinética

  1. Matheus Bezerra de Lima disse:

    Eu acho que entendo o que o senhor falou, mas quando tentei fazer os mesmo pontos que o senhor fez, como a ideia de que o TTEC assume que as forças se deslocam identicamente e que só é válido para partículas ou corpos rígidos sem rotação, recebi críticas até mesmo do meu professor de Física na Universidade, ele disse “eu parti direto da segunda Lei de Newton, não assumi mais nada, não assumi rigidez do corpo, e isso mostra que a variação da energia cinética de translação do sistema, que é variação da energia cinética do centro de massa, se deve ao trabalho da força externa resultante”.

    Ele pegou a segunda lei de Newton na forma “m*(dV/dt)=F”. Aí ele fez “m*(dv/dt)*dr=F*dr”. Esse dr é a componente infinitesimal da trajetória do corpo.

    Integrando para toda a trajetória (cada força externa atuando sobre esse corpo teria o mesmo deslocamento ao longo da trajetória do corpo), chegamos a integral de F*dr sendo igual a variação da energia cinética de translação.

    Onde está o erro? Eu sei que deve haver um erro em algum lugar

    • Fernando Lang disse:

      O que o professor demonstrou é o que está referido na dissertação de mestrado como o Teorema do Centro de Massa ou o Teorema do PSEUDOtrabalho.

      A questão relevante é que a fonte do trabalho no caso do caminhante é interna ao corpo do caminhante, a fonte é muscular; são os músculos que trabalham e não o piso.

      E existem muitas outras situações em que o trabalho é interno ao sistema considerado como por exemplo:
      – o caso do automóvel no qual as forças de atrito estático entre as rodas de tração e a pista também não realizam trabalho. O trabalho é realizado pelo motor (ou alguém tem dúvida sobre isto?) graças a uma fonte de energia interna como o combustível ou a bateria se o motor é elétrico.
      – o caso do ciclista que sabe que deve realizar um trabalho para bicicleta andar e que não espera que o atrito dos pneus com a pista faça isso por ele. 😉

      Esta discussão vai muito além de calcular corretamente, envolve conceitos importantes da Termodinâmica também. Sistemas com estrutura interna são objetos também da Termodinâmica. Aconselho que tu, teu professor e colegas leiam as referências.

Acrescente um Comentário:

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *