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Transição da Filosofia Natural renascentista para a Ciência Moderna

O Prof. Fernando Kokubun (FURG) em 30/03/16 assim me inquiriu: Oi Lang, eu vi esta postagem sobre Descartes e fiquei em dúvida:é correto dizer que Descartes era físico? O termo físico não foi proposto muita mais tarde? Ou a minha dúvida é um preciosismo sem necessidade? Abs.

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Eu lhe respondi: Tens razão! Isto é uma leitura atual sobre Descartes. Naquela época quem fazia o que hoje chamamos de Ciências Naturais (Física, Astronomia, Química, Biologia, Geologia, …) eram os filósofos naturais. O termo cientista e físico foram cunhados na quarta década do século XIX por William Whewell.

A seguir pedi a ajuda do Prof. Alexandre Medeiros no esclarecimento do tema. Abaixo vai a sua interessante aula!

 

Respondido por: Prof. Alexandre Medeiros - UFRPe

DA FILOSOFIA NATURAL para a CIÊNCIA MODERNA
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Mais uma vez, meu amigo Fernando Lang faz outra excelente provocação em seu riquíssimo CREF; desta vez a respeito da passagem da FILOSOFIA NATURAL para a CIÊNCIA MODERNA e pede minha humilde contribuição ao DEBATE.
Escrevo, em resposta ao seu pedido, estes breves comentários, aqui reunidos na forma de um singelo post.
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A QUESTÃO de se tentar DEFINIR com PRECISÃO o que vem a ser FILOSOFIA NATURAL, caro amigo Fernando Lang é bem mais COMPLEXA do que possa parecer à primeira vista e mais ainda, de tal conceituação se tentar extrair sua ligação com o NASCIMENTO da CIÊNCIA MODERNA. Mas, ela certamente merece um breve comentário que permita posteriores aprofundamentos aos interessados neste relevante tema para uma melhor compreensão histórica do nascimento da CIÊNCIA MODERNA.
A FILOSOFIA NATURAL RENASCENTISTA, da qual, apenas POR EXTENSÃO, fariam parte GALILEU e DESCARTES (dois importantes personagens do século XVII, imediatamente posteriores ao período de nascimento deste ramo do conhecimento) desafia uma definição fácil, já que tais descrições podem simplificar demais, seja reduzindo-a apenas às suas conexões com a CIÊNCIA MEDIEVAL ou, alternativamente, forçando-a em uma TELEOLOGIA (raciocínio em círculo vicioso) que culmina na REVOLUÇÃO CIENTÍFICA do século XVII.
De minha parte, prefiro considerar GALILEU e DESCARTES como os primeiros e verdadeiros ELEMENTOS DE TRANSIÇÃO entre a tradição da FILOSOFIA NATURAL RENASCENTISTA e a CIÊNCIA MODERNA.
Já um personagem igualmente genial como KEPLER, por exemplo, também contemporâneo, de GALILEU e DESCARTES do século XVII, pode, entretanto, ser considerado ainda bem mais IMERSO na tradição da FILOSOFIA NATURAL RENASCENTISTA.
Na verdade, há DUAS TENDÊNCIAS interpretativas opostas neste DEBATE sobre a CONCEITUAÇÃO do que seria mesmo esta aludida FILOSOFIA NATURAL RENASCENTISTA:
01. Uma destas duas tendências é aquela que confunde propositalmente a FILOSOFIA NATURAL típica dos séculos XV e XVI (tida como RENASCENTISTA e da qual fazem parte GIOVANNI BRANCA, ATHANASIUS KIRCHER, WILLIAM GILBERT, COPERNICO, TYCHO BRAHE, KEPLER dentre tantos outros) com a VARIEDADE de estudos sobre a NATUREZA praticados na IDADE MÉDIA (da qual fazem parte WITELLO, ROGER BACON, PETRUS PEREGRINUS, BEDA dentre tantos outros). Essa tendência interpretativa costuma ir ir tão longe a ponto de interpretar o próprio RENASCIMENTO como um período de CONSERVADORISMO, a este respeito da investigação na NATUREZA.
02. Outra tendência interpretativa existente é aquela que enfatiza o papel da FILOSOFIA NATURAL DO RENASCIMENTO como um “precursor” da CIÊNCIA MODERNA, mesmo ao alto custo de ignorar ou mesmo remover as suas ligações com disciplinas hoje consideradas PSEUDOCIENTÍFICAS, como NUMEROLOGIA, ASTROLOGIA e MAGIA.
03. Contribuições mais recentes, no entanto, têm ajudado a traçar uma TERCEIRA VIA que tenta observar as características da FILOSOFIA NATURAL DO RENASCIMENTO em seus próprios termos históricos bem situados. Para isso, faz-se necessário distinguir a mesma da mais antiga FILOSOFIA NATURAL MEDIEVAL que estava geralmente baseada no “Aristotelicum Corpus” e que era praticada nas Universidades medievais. No entanto, isso não significa que a sua abordagem era puramente estática ou regressiva; pelo contrário.
Pensadores medievais, por exemplo, como JEAN BURIDAN, BIAGIO PELACANI e NICOLE ORESME levaram a FÍSICA ARISTOTÉLICA e a MECÂNICA em novas direções na Europa medieval.
Cabe lembrar, ainda, que a própria natureza das UNIVERSIDADES MEDIEVAIS era tal que o ensino nas mesmas foi sempre fortemente controlado pelas autoridades, e tanto a METAFÍSICA quanto a TEOLOGIA exerceram uma forte influência, limitando o número de direções em que a TEORIZAÇÃO SOBRE A NATUREZA poderia avançar.
PARADOXALMENTE, foi o retorno à cena de outro antigo ramo do pensamento sobre a NATUREZA; o da escola rival de pensamento do PLATONISMO e do NEOPLATONISMO que finalmente permitiu mais liberdade dentro da TRADIÇÃO ARISTOTÉLICA. Essa é uma história bela, mas muito longa que envolve debates históricos como os travados no seio da cristandade entre o REALISMO e o NOMINALISMO e que foram divertidamente explorados por UMBERTO ECO em seu romance “O NOME DA ROSA”. Mas, aprofundar aqui tal discussão seria sair de nosso breve rumo atual (escrevi vários posts sobre isso recentemente ao comentar o falecimento de Umberto Eco).
Certo é que embora a FILOSOFIA DE PLATÃO nunca tenha desaparecido completamente durante o curso da IDADE MÉDIA, a consolidação de uma ESCOLA NEOPLATÔNICA no século XV levou às DISTINÇÕES CLARAS entre as esferas que pertenciam adequadamente aos dois grandes pensadores do mundo antigo: PLATÃO e ARISTÓTELES.
Enquanto PLATÃO era considerado na Idade Média como um teólogo e um mestre das realidades metafísicas; ARISTÓTELES era visto, por contraste, sobretudo, como um INVESTIGADOR DO MUNDO SUBLUNAR sujeito a geração e corrupção. A recuperação dessa antiga dicotomia teve o efeito de minar os laços de longa data estabelecidos entre o ARISTOTELISMO e a ESCOLÁSTICA (doutrina cristã inaugurada por THOMAS DE AQUINO e fundada na LÓGICA ARISTOTÉLICA), e abriu novos espaços para a filosofia não prejudicados por limitações metafísicas.
Ao mesmo tempo, também a REFLEXÃO SOBRE O MUNDO NATURAL feita pelo PLATONISMO e mais próxima da MATEMÁTICA assim como outras marcas das antigas filosofias do ESTOICISMO, CETICISMO e EPICURISMO estimularam a FILOSOFIA NATURAL MEDIEVAL de diferentes maneiras.
A aplicação conjunta destas ideias a vários campos de investigação daria à FILOSOFIA NATURAL RENASCENTISTA uma identidade nova e distinta, forjada na DIALÉTICA contínua com o ARISTOTELISMO. Portanto, na verdade, o ARISTOTELISMO representou a FORÇA MOTRIZ por trás da FILOSOFIA NATURAL DO RENASCIMENTO, tanto por causa da sua pluralidade de abordagens e de debates internos, quanto porque ele (o ARISTOTELISMO) serviu como o ALVO POLÊMICO daqueles que ousaram desafiar o paradigma tradicional de ensino universitário, como ABELARDO, ALBERTO MAGNO, DUNS SCOTTO, WILLIAM DE OCCAM, dentre outros.
Finalmente, outros FATORES DE CARÁTER NÃO ESPECULATIVO também tiveram um profundo impacto sobre a FILOSOFIA NATURAL, como as INOVAÇÕES TECNOLÓGICAS, tais como o advento da IMPRENSA, o TELESCÓPIO e o MICROSCÓPIO; grandes viagens de NAVEGAÇÕES e suas decorrentes DESCOBERTAS GEOGRÁFICAS, assim como desenvolvimentos ocorridos dentro das próprias universidades, como a instituição de jardins botânicos e da antes combatida prática da dissecação de corpos.
Certo é, caro Fernando Lang, que de um MODO GERAL, aquilo que se convencionou aludir SIMPLIFICADAMENTE como sendo a FILOSOFIA NATURAL (MEDIEVAL ou RENASCENTISTA) em breves comentários sobre o nascimento da CIÊNCIA MODERNA, tem sido visto costumeiramente como sendo um antigo campo de conhecimento distinto da METAFÍSICA e da MATEMÁTICA; mas que é, na verdade, algo bem mais COMPLEXO que envolve uma ampla gama de assuntos abordados por ARISTÓTELES e incluídos nas ciências físicas. De acordo com esta classificação tradicional, a FILOSOFIA NATURAL é o campo de estudos dos seres que sofrem MUDANÇAS e que são independentes dos seres humanos. Este vasto campo de investigação já não mais antropomórfico foi descrito em tratados aristotélicos como a FÍSICA, SOBRE OS CÉUS, DA GERAÇÃO E DA CORRUPÇÃO, METEOROLOGIA, HISTÓRIA DOS ANIMAIS, SOBRE A ALMA; e nos chamados “NATURALIA PARVA” (outros escritos menores); e alguns escritos apócrifos de raízes igualmente aristotélicas (por exemplo, os PROBLEMAS), que foram ensinados nas Universidades, na Idade Média e no Renascimento. Durante o Renascimento, apesar da centralidade duradoura do paradigma aristotélico para o referido campo de estudo da Natureza, a FILOSOFIA NATURAL foi enriquecida e ampliada por uma série de outras abordagens, como anteriormente brevemente comentado.
Até o final do século XVI, a FILOSOFIA NATURAL não era mais puramente um campo do conhecimento identificado apenas com o sistema aristotélico ou com um currículo universitário padrão.
Ao mesmo tempo, a proliferação de novos contextos e formas de aprendizagem não eliminaram automaticamente os contextos e formas mais antigos, e esta COMPLEXA FUSÃO foi o que verdadeiramente contribuiu para o NASCIMENTO DA CIÊNCIA MODERNA em um período de intensa agitação política e religiosa.

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