Partículas fundamentais e perda de energia
18 de março, 2019 às 21:08 | Postado em Física Nuclear, Física de Partículas, Interações fundamentais, Mecânica quântica, Radiação, Relatividade
Respondido por: Prof. Magno T. V. Machado - IF-UFRGSEstava refletindo sobre isso e não consegui chegar em nenhuma conclusão satisfatória. Partículas elementares (como neutrinos, por exemplo) podem perder energia de alguma forma?
Corpos do mundo do macro, constantemente perdem parte de sua energia na forma de radiação luminosa. Gostaria de saber se existe algum processo semelhante que se aplique ao mundo quântico.
Interessante a menção a perda de energia por radiação térmica, pois a descrição do espectro de radiação térmica dos corpos negros foi um dos problemas fundamentais que levaram ao advento da Mecânica Quântica. Os trabalhos de Max Planck estão associados ao tratamento não-clássico para a descrição completa da radiação de corpo negro e à hipótese de quantização da energia [1].
Quanto à pergunta específica sobre a perda de energia de partículas elementares, o tópico é bastante conhecido e é crucial na construção de detectores em física nuclear e de partículas. Ou seja, a maior parte dos detectores usa informação de como partículas carregadas ou radiação interage com a matéria e perde parte ou a totalidade de sua energia inicial. Resumo abaixo alguns dos princípios físicos utilizados para quantificar a energia perdida pela partícula carregada e neutra e para onde esta energia vai.
1) Uma partícula carregada mais massiva que o elétron (por ex., prótons, píons, káons, múons, etc) com velocidades relativísticas (próximas a velocidade da luz) interage com os elétrons e núcleos próximos à sua trajetória por meio de efeitos eletromagnéticos e o resultado da sua interação pode ser obtida usando eletrodinâmica clássica. A transferência de momento em uma interação individual depende da massa e carga da partícula alvo, da carga e da velocidade da partícula do projétil e do parâmetro de impacto da colisão. Quase toda a energia é perdida para os elétrons atômicos, que são mais numerosos e muito mais leves que os núcleos, apesar de sua menor carga.
2) A perda total de energia de uma partícula que passa por uma fatia de matéria é então obtida pela integração sobre a distribuição dos parâmetros de impacto envolvidos. Conservação de energia, efeitos atômicos e quânticos limitam o alcance do parâmetro de impacto sobre o qual a integral é fisicamente significativa. Para ser mais preciso, o resultado do cálculo para partículas mais pesadas que um elétron, é conhecido como a equação de Bethe-Bloch [2]. Esta dá a perda média de energia da partícula carregada na passagem pela matéria dada a espessura, Delta_x.
Em suma, a interação eletromagnética das partículas carregadas massivas pode se dar com os elétrons atômicos onde a partícula carregada incidente perde energia e os átomos são excitados ou ionizados. Pode também ocorrer a interação com o núcleo atômico, onde a parícula é defletida (espalhada) causando múltiplos espalhamentos da mesma no material. Durante este espalhamento um fóton de bremsstrahlung pode ser emitido. Ainda, no caso da velocidade da partícula ser mair que a da luz naquele meio (c/n, onde c é a velocidade da luz no vácuo e n é o índice de refração do meio) há a geração de ondas de choque eletromagnéticas que aparecem na forma da radiação Cherenkov [3]. Esta radiação é um dos grandes meios de detecção dos léptons múons e taus ultraenergéticos no telescópio de raios cósmicos Pierre Auger e nos telescópio de neutrinos Icecube (neste últimos, léptons múon e taus muitíssimo energéticos são gerados pela interação de neutrinos cósmicos com o material detector, o gelo, em processos denominados de processos fracos de corrente carregada).
No caso dos elétrons, eles interagem com a matéria eletromagneticamente similarmente como as outras partículas carregadas. Pequenas diferenças na taxa de perda de energia por ionização surgem devido ao fato de que um elétron de alta energia tem a mesma massa que os elétrons atômicos para os quais a energia é transferida, e devido à identidade das partículas envolvidas no processo de dispersão. Entretanto, há um efeito muito maior associado à sua baixa massa: eles experimentam grandes acelerações no campo dos núcleos atômicos, e isso leva à radiação eletromagnética conhecida como bremsstrahlung ou “radiação de frenagem”. A passagem de um elétron de alta energia através da matéria, portanto, resulta na emissão de fótons de alta energia ou raios gama. Acima de uma energia crítica (que depende do número atômico do material de interação), a perda de energia por radiação é muito maior do que aquela devida à ionização e a energia média do elétron após atravessar uma espessura Delta_x do material é dada por E = E_0 exp(-a Delta_x), onde E_0 é a sua energia inicial e a = rho/X_0. Aqui, rho é a densidade do material e X_0 é o parâmetro denominado comprimento de radiação (define a escala de comprimento para a perda de energia). Resumindo, a energia média dos elétrons acima da energia crítica decai exponencialmente com a espessura atravessada no material.
No caso específico da radiação de frenagem, quando partículas carregadas ultrarelativísticas (por exemplo, elétrons) movem-se através de campos magnéticos estas são defletidas ao longo de uma trajetória curva. Como suas direções de movimento estão constantemente mudando, elas estão também acelerando e portanto emitindo radiação. Esta radiação devido a aceleração das partículas em trajetórias curvilíneas submetidas a campos eletromagnéticos externos é denominada radiação síncroton. A radiação gerada (fótons de alta energia) é denominada luz síncroton. Por exemplo, o projeto Sirius (inaugurado ao final de 2018) [4] é a nova fonte de luz síncrotron brasileira, a qual será uma das melhores e mais potentes fontes de luz síncrotron do mundo. Uma fonte de luz síncrotron consiste de um anel dentro do qual elétrons circulam acelerados até quase a velocidade da luz, fazendo com que essas partículas emitam uma forte radiação eletromagnética. A radiação gerada pelo Sirius poderá ser utilizada para obter imagens tanto de materiais biológicos, como vírus/proteínas, quanto da estrutura cristalina/molecular de amostras de solos, minerais e novos materiais criados em laboratório.
No caso de partículas neutras, estuda-se a produção de partículas secundárias carregadas e a sua subsequente detecção. No caso dos fótons, existem três processos pelos quais ele pode interagir com a matéria, dependendo da sua energia:
1) Efeito fotoelétrico: o fóton é absorvido por um elétron das camadas atômicas e a energia transferida libera o elétron da mesma. É importante para fótons de energia muito baixa, abaixo de 0,1 MeV.
2) Espalhamento Compton: é o espalhamento do fóton com um elétron “quase livre” (a energia do fóton é grande comparada com a energia de ligação do elétron). O fóton é defletido e seu comprimento de onda muda devido a transferência de energia-momento. Este processo é dominante abaixo de 5 a 10 MeV.
3) Produção de pares: o fóton se converte em um par elétron-pósitron no campo de um núcleo pesado. Este é processo dominante para a interação de fótons de altas energias, tipicamente maiores que 10 MeV.
Além das interações eletromagnéticas, hádrons (bárions, como prótons e nêutrons e os mésons, como os píons) interagem via força forte com os núcleos dos materiais. Estas interações são de curto alcance e com uma probabilidade de interação muito pequena. Em geral, define-se um comprimento de absorção, lambda_a, num dado material que é inversamente proporcional à seção de choque inelástica hádron-alvo. Como um exemplo, para nêutrons de alta energia de 100 GeV, o comprimento de absorção no chumbo (Pb) é de lambda_a = 194 cm/rho, onde rho é a densidade do material em unidades de g/cm^3. As informações detalhadas sobre perda de energia por diferentes partículas (carregadas ou neutras) estão disponíveis no 2018 Review of Particle Physics [5].
Finalmente, no caso dos neutrinos [6] estes interagem apenas através da força fraca com o material com o qual interagem. Os processos iniciados por neutrinos podem ser de corrente carregada onde ele emite um bóson de gauge carregado (bóson eletrofraco W) e há a geração de um lépton carregado com mesmo sabor do neutrino original (eletrônico, muônico ou tauônico) ou de corrente fraca, onde o neutrino emite o bóson de gauge neutro Z. A seção de choque de interação de neutrinos é extremamente pequena. Por exemplo, para neutrinos com energia de 200 GeV a seção de choque total de interação é da ordem de σ_total =1,6 · 10^{-36} cm^2 = 1,6 picobarn. Portanto, para compensar este valor pequeno nos experimento utilizando neutrinos deve-se utilizar sistemas de detecção com grande volume de material detector alvo (como Icebube, Superkamiokande, por exemplo) ou fluxos de neutrinos muito intensos (como NuMI, J-PARC, CNGS ou os feixes para o deve ser futuro experimento DUNE).
Referências:
[1] Nelson Studart, A Invenção do Conceito de Quantum de Energia segundo Planck. Revista Brasileira de Ensino de Física, vol. 22, no. 4, Dezembro, 2000 (http://www.sbfisica.org.br/rbef/pdf/v22_523.pdf)
[2] Fórmula de Bethe-Bloch, https://pt.wikipedia.org/wiki/F%C3%B3rmula_de_Bethe
[3] Radiação Cherenkov, https://en.wikipedia.org/wiki/Cherenkov_radiation
[4] Projeto Sirius, https://www.lnls.cnpem.br/sirius/, https://pt.wikipedia.org/wiki/Sirius_(acelerador_de_part%C3%ADculas)
[5] 2018 Review of Particle Physics, Passage of particles through matter: http://pdg.lbl.gov/2018/reviews/rpp2018-rev-passage-particles-matter.pdf
[6] Informação sobre neutrinos, https://pt.wikipedia.org/wiki/Neutrino