Mais sobre o teorema trabalho-energia e a questão sobre o Bolt no ENEM-2015
31 de outubro, 2015 às 19:33 | Postado em Mecânica, Questões do ENEM, vestibulares, concursos
Respondido por: Prof. Fernando Lang da Silveira - www.if.ufrgs.br/~lang/Professor Lang
Suas discussões nas postagens do site sempre são muito boas mas estas do ENEM merecem um elogio especial.
Eu lhe confesso que não eu sabia sobre as restrições do teorema trabalho-energia conforme o senhor comentou na questão da corrida do Bolt em Questão 67 sobre a corrida do Usain Bolt – Prova Branca – ENEM2015.Colegas com quem eu discuti também manifestaram não saber e até duvidaram. Eu estou convencido em face de seus argumentos mas gostaria de ter um exemplo simples, acessível para alunos de ensino médio, da não validade do teorema pois alguns ótimos alunos me questionaram e eu lhe confesso que fiquei perdido. Não me interprete mal por favor pois confio muito no que o senhor diz. Eu gostaria de avançar meu entendimento para ajudar melhor os meus alunos que realmente querem aprender.
O senhor é uma referência para muitos professores como eu.
Agradeço antecipadamente.
Abs
É importante notar que no caso específico do problema do Bolt as informações que são fornecidas são a massa (90 kg) e a velocidade (12 m/s) do Bolt em um particular momento. As demais informações no comando da questão são supérfluas para a resolução imaginada pelo idealizador da mesma, entretanto foram usadas por muitos respondentes, consistentemente com seus conhecimentos de ensino médio, conduzindo-os a uma alternativa errada.
Naquele particular momento em que o valor da velocidade é 12 m/s, partes diferentes do corpo do corredor possuem velocidades diferentes e portanto, rigorosamente, a velocidade informada é a velocidade de um ponto do corpo. Qual ponto? Somente sabendo mais sobre como tal velocidade é determinada para responder com precisão; entretanto assumirei que seja a do centro de massa do atleta.
Então 90×122/2=6480 J é a energia cinética associada ao centro de massa do atleta e é igual à variação da energia cinética até aquele momento pois incialmente ela era nula. Mas a variação da energia cinética associada ao centro de massa somente é igual ao trabalho total realizado em casos muito especiais: o sistema é uma partícula, o sistema é um corpo rígido em pura translação. Ambas os casos não se aplicam ao corpo humano que é obviamente não rígido, com estrutura interna constituída por subsistemas interagentes (forças internas são capazes de realizar trabalho) e capazes de transformar energia química em outras formas de energia, … .
Conforme o pedido eu vou exemplificar a não validade do Teorema Trabalho-Energia Cinética em um sistema constituído por subsistemas (corpos) que imagino possa ser entendido com conhecimentos básicos de Mecânica, consistentes com os conteúdos programáticos para o ensino médio.
Começo imaginando dois corpos, cada um deles com a massa de 1,0 kg, ambos em repouso. Uma mola ideal (sem massa, obedecendo a Lei Hooke, …) comprimida (não representada na figura abaixo) se distende, realizando trabalho sobre cada um dos corpos e os separando.
O trabalho realizado em cada um dos corpos é 50 J, levando-os a seguir a se movimentarem com velocidades com sentidos contrários mas de mesmo módulo (10 m/s) em acordo com a figura seguinte. Este processo também conserva o momento linear (a quantidade de movimento) total dos dois corpos. O momento linear é inicialmente nulo e continua nulo quando os corpos já estão separados, portanto em perfeito acordo com a Lei da Conservação do Momento Linear.
Este singelo exemplo demonstra que a variação da energia cinética associada ao centro de massa do sistema – que é nula – difere do trabalho total no sistema – +100 J.
Vou complexificar a situação anteriormente proposta, imaginado que o sistema de dois corpo esteja contido e oculto dentro de uma caixa com massa de 2,0 kg, constituindo assim um super sistema com massa de 4,0 kg (vide a próxima figura).
Imagino que este super sistema esteja em queda livre, caindo 1,25 m enquanto lá dentro os corpos se separam. Cada corpo, inclusive a caixa, adquirem uma velocidade descendente de 5,0 m/s (conforme representado na próxima figura).
Este super sistema apresenta portanto uma variação na energia cinética associada ao seu centro de massa de (4×5^2)/2 J = 50 J, exatamente igual ao trabalho da força da gravidade (4x10x1,25 J = 50 J), entretanto diferente do trabalho total no sistema que vale 50 J + 100 J = 150 J.
O corpo humano é um super sistema complexo, constituído por muitos subsistemas não rígidos e interagentes, constantemente realizando trabalho. É uma ingenuidade imaginar portanto que o trabalho total no corpo de um atleta possa ser reduzido à variação da sua energia cinética associada ao centro de massa do atleta pois as forças internas ao atleta realizam trabalhos.
O erro de formulação da questão é induzido inicialmente pela necessidade exacerbada de as questões do ENEM sempre estarem “contextualizadas”. Soma-se a isso o aparente desconhecimento do redator e dos revisores da questão sobre noções elementares de Física.
Outras questões do ENEM-2015 comentadas no CREF:
- Questão ENEM-2015 sobre estilingues
- Questão do carro solar – ENEM 2015
- Questão sobre Óptica e Ibn Al Haytham – ENEM-2015
- Questão ENEM 2015 sobre interferência está mal formulada?
“Docendo discimus.” (Sêneca)
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Quais implicações essas observações sobre situações em que o teorema Trabalho-energia cinética não é válido (seja por trabalhos de forças internas ou por que diferentes pontos do sistema apresentam deslocamentos diferentes) trazem ao teorema de conservação da energia mecânica?
Como o Teorema Trabalho-Energia Cinética é usado no Teorema da Conservação da Energia Mecânica, este último padece das mesmas limitações do primeiro.