ESTADOS EMARANHADOS em MECÂNICA QUÂNTICA
28 de janeiro, 2022 às 11:14 | Postado em Mecânica quântica
Respondido por: Prof. Fernando Kokubun (FURG) - https://www.fisicaseteemeia.com.br/2021/Caros professores
Sugiro ao CREF fazer um post sobre ESTADOS EMARANHADOS em Mecânica Quântica.
Agradeço por antecipação.
Atualmente a utilização de estados emaranhados (ou estados entrelaçados) em física, tem trazido contribuições importantes para a compreensão da mecânica quântica, com aplicações em situações que seriam impossíveis (ou muito ineficientes) sem a utilização destes estados emaranhados. O interessante é que os estados emaranhados surgiram inicialmente como uma crítica à mecânica quântica.
Erwin Schroedinger, um dos autores da moderna mecânica quântica, foi um forte crítico da mecânica quântica, conjuntamente com Einstein! Em um artigo de 1935, a frase “Podemos elaborar até um caso ridículo.” [1] introduz a descrição do extremamente popular experimento do gato vivo-morto de Schroedinger. É importante ressaltar que Einstein e Schrodinger (e outros críticos) não contestavam os resultados da mecânica quântica (as suas previsões e realizações comprovadas em experimentos), mas situações que do ponto de vista de fundamentos, não eram bem explicados pela postura ortodoxa da mecânica quântica (ou eram evitados pela postura ortodoxa). Também em um artigo de 1935 Albert Einstein, Boris Podolsky e Nathan Rosen [2], argumentam que a mecânica quântica seria uma teoria incompleta, e uma resposta satisfatória para questões apresentadas, só foi possível após três décadas. Neste texto, não vamos nos ater nas questões trazidas por ambos, de forma que para quem tiver interesse em conhecer um pouco mais sobre o assunto, uma recomendação seria o livro [3] ou o artigo [4]. Vamos tratar do que seria o emaranhamento quântico.
Para entender o emaranhamento, é importante antes conhecer o chamado Princípio da Superposição, que tem um papel muito importante na mecânica quântica. Vamos considerar um sistema que possui apenas duas possibilidades de resultados. Você com certeza deve conhecer um bem comum: uma moeda de duas faces. Neste caso, nosso sistema pode ter dois possíveis resultados “cara” ou “coroa”. No caso da física clássica (a física de Newton que aprendemos na escola) existem apenas estas duas possibilidades. Dizemos então que nosso sistema pode estar no estado “moeda é cara” ou ” moeda é coroa”, sendo estados excludentes na física clássica. Ou é um estado ou é o outro. Mas na mecânica quântica (lembrando que nossa moeda representa um sistema quântico), o Princípio da Superposição nos permite uma outra situação, e nossa moeda pode ser cara E coroa! Você talvez pergunte, “então, se eu olhar a moeda vou ver cara E coroa? ” . A resposta é um sonoro Não! Ao olhar a moeda, o resultado será cara ou coroa. Então como sabemos que ocorre esta superposição? Fazendo um experimento SEM medir se é cara ou coroa! Um experimento que muita gente já ouviu falar é o da dupla fenda, que você pode imaginar como um sistema de duas possibilidades: passar por uma fenda ou outra. Neste experimento, SE não determinamos por qual fenda passou o objeto, observamos justamente a superposição de dois estados, que na tela aparece como um padrão que denominado padrão de interferência. Por outro lado, SE nosso experimento permitir a determinar por qual fenda a partícula passou, deixamos de observar o padrão de interferência. Independente dos detalhes, a dupla fenda é um entre diversos experimentos que indicam a validade do Princípio da Superposição.
Mas vamos retornar para a nossa moeda, e utilizar a ideia de que a função de onda na mecânica quântica contém todas as informações do sistema. No nosso exemplo, temos duas informações: a moeda é cara, moeda é coroa. Para representar a função de onda, vamos imaginar que a informação “moeda é cara”, “moeda é coroa” esteja delimitado por uma caixa como nos desenhos na Figura 1 (representamos cara com a cor azul, e coroa com a cor vermelha). A Figura 1a seria então a função de onda com a informação que a moeda é cara, a Figura 1b a função de onda da moeda é coroa e a figura 1c a função de onda com a superposição destas duas possibilidades. O caso do estado de superposição representado na figura 1c, NÃO deve ser visualizado como sendo um estado de duas moedas, mas de apenas uma moeda. Para enfatizar esta situação, utilizamos o símbolo de soma + e deve ser lido como “nosso sistema foi preparado no estado moeda cara e moeda coroa”. Para saber o que contém a caixa, precisamos “abrir a caixa”, ou na linguagem da física “efetuar uma medida”. Enquanto não realizarmos a medida (abrir a caixa), não tem sentido (pelo menos para uma interpretação ortodoxa da mecânica quântica) perguntar se a moeda dentro da caixa é cara ou coroa. O assunto “efetuar uma medida” em mecânica quântica é extremamente atual e importante, um tema que vamos tratar em um outro texto, aqui vamos apenas utilizar a noção mais instrumental, de que medir nos devolve um resultado.
Agora vamos considerar uma situação com duas moedas e imaginar uma construção onde se a primeira moeda for cara a segunda será coroa e se a primeira moeda for coroa a segunda será cara. Vamos usar uma convenção de representar a moeda UM SEMPRE no lado esquerdo da moeda DOIS. Na nossa construção, é importante perceber que se a moeda UM for cara, a moeda DOIS será coroa, e vice-versa. pois nosso sistema é preparado desta forma. Esta relação não tem nada excepcional, e pode ser produzida na física clássica [4]. A figura 2 representa a nossa função de onda descrevendo estas duas possibilidades (lembrando agora que temos duas moedas), na esquerda temos a representação de uma situação na qual a moeda UM é cara e a moeda DOIS é coroa, e na direita a situação inversa.
Mas como na mecânica quântica vale o princípio da superposição linear, devemos levar em consideração a situação onde a moeda um é cara e a moeda dois é coroa E a situação onde a moeda um é coroa e a moeda dois é cara, como representada na figura 3 (novamente atenção, não se engane com a representação na figura, pensando como sendo 4 moedas, pois são apenas DUAS moedas). Este estado de superposição não ocorre na física clássica.
Este estado é o nosso estado emaranhado. Mas antes de continuarmos, é importante ressaltar que nem todos as situações com superposição de duas moedas é um estado emaranhado. Por exemplo, o caso em que a moeda UM é sempre cara e a moeda DOIS pode ser cara ou coroa, está representado na figura 4, e não é um estado emaranhado, mais adiante mostro a razão de não ser considerado emaranhado.
O estado emaranhado, descreve uma situação que não é contemplado pela física clássica, e isto fica bem ilustrado quando resolvemos verificar se a moeda UM é cara ou coroa. Quando isto é realizado (dizemos que efetuamos uma medida), vamos obter cara ou coroa, mas o que torna o sistema interessante, não é este resultado (moeda UM cara ou coroa), mas o fato de que SE a moeda UM for cara, a moeda DOIS será necessariamente coroa e vice-versa. No caso da superposição representado na Figura 4, o fato de medirmos a moeda UM e obter o resultado cara, não faz com que a moeda DOIS tenha um resultado definido, continua podendo ser cara ou coroa, mas na situação do estado emaranhado, o resultado da medida na moeda UM é fortemente correlacionado com o resultado na medida na moeda DOIS. E isto independente das duas moedas estarem perto! Elas podem estar separados por uma grande distância, e mesmo assim o fato de medir a moeda UM, influencia o resultado da medida na moeda DOIS. Esta situação não agradava Einstein (além de outras questões, talvez mais do que esta situação), pois implicava na violação da Teoria da Relatividade, que impõe como limite máximo da velocidade de propagação de informações, e no estado emaranhado a impressão é que a informação do resultado da medida na moeda UM se propaga instantaneamente para a localização da moeda DOIS. A frase “ação fantasmagórica” expressa a discordância de Einstein com esta possibilidade. Para contornar esta situação, Einstein argumentava que apesar dos sucessos da mecânica quântica, ela era uma teoria incompleta. E com uma teoria mais geral, estas e outras inconsistências seriam sanadas.
Vamos fazer uma breve digressão matemática, bem simples que espero ajude a clarear um pouco o significado de estado emaranhado. Para isto, vamos representar a condição “moeda é cara” com a letra x e a condição “moeda é coroa” com a letra y. E outra convenção que a moeda UM será representada por uma letra maiúscula sempre na esquerda e a moeda DOIS por uma letra minúscula sempre na direita [6]. Neste caso, representamos “moeda UM é cara” e “moeda DOIS é coroa” como Xy lembrando que a ordem é importante, desta forma, Yx representa “a moeda UM coroa e a moeda DOIS cara”, que é diferente da situação Xy. Exceto por esta regra, as outras regras que aprendemos na escola, como a distributiva (isto é, a(x+y)=ax+ay ) continuam válidas [6]. Desta forma nosso sistema de duas moedas, para o caso emaranhado que apresentamos é representado como Xy+Yx. Além deste estado, vamos considerar o caso representado por Xy+Xx, que descreve um sistema com a moeda UM sendo cara a moeda DOIS sendo coroa E moeda UM sendo cara, moeda DOIS sendo cara e que afirmamos não ser um estado emaranhado. Vamos verificar esta afirmação. Se utilizamos a regra da distributiva podemos escrever Xy+Xx=X(y+x), e notemos que o termo entre parênteses representa o estado da moeda DOIS, de forma que o estado da moeda UM fica separado do estado da moeda DOIS, ou de forma pictórica, conseguimos fazer a separação
(estado da moeda UM) (estado da moeda DOIS)
e quando isto é possível de ser realizado, o estado NÃO é emaranhado. No caso Xy+Yx não é possível escrever na forma descrita acima (se você tem familiaridade para trabalhar com matemática, em [7] indico como demostrar de forma bem simples).
Durante muitos anos, a crítica de Einstein (de que a mecânica quântica não era uma teoria completa) não tinha como ser respondida de maneira mais enfática, com algum tipo de experimento. Mas em 1964, John Bell apresentou o que conhecemos como desigualdade de Bell, que permitiu verificar experimentalmente se a mecânica quântica era uma teoria incompleta. E os resultados indicam que Einstein estava errado em sua crítica. Sobre a existência da ação fantasmagórica, o consenso atual é de que não ocorre transmissão de informações que possam ser utilizadas de maneira útil no emaranhamento que viole o princípio da relatividade. Esta ação “fantasmagórica” é uma característica da mecânica quântica, que não é uma teoria local.
E algo que (possivelmente) Einstein não imaginava é que a ideia de estados emaranhados, acabou sendo uma proposta fundamental para entendermos melhor a mecânica quântica, e abrindo novas aplicações para a mecânica quântica. Estudos como criptografia, computação quântica, metrologia quântica utilizam estados emaranhados, e sem esta compreensão destes estados, possivelmente nenhum destes temas teriam se desenvolvido (pelo menos com as características atuais).
Uma pergunta interessante é porque foi necessário tantos anos até demonstrar que a ideia de Einstein da mecânica quântica não ser completa não se sustentava? Uma razão sem dúvida alguma foi a necessidade do desenvolvimento de novas técnicas experimentais, mas talvez tenha ajudado os resultados positivos da mecânica quântica, que não dependiam de ser a ideia de Einstein correta ou não. Isto fez com que a ideia expressa na chamada Escola de Copenhagen, (que estabeleceu por exemplo os princípios básicos da interpretação da função de onda, que utilizamos neste texto), acabasse prevalecendo e discussões que hoje consideramos como fundamentais foram considerados “sem sentido”, por não ser possível dar uma reposta experimental (ao artigo do EPR, Niels Bohr apresentou no mesmo ano, um artigo contrapondo a ideia expressa por Einstein e colegas, mas não havia como dizer experimentalmente quem estava correto). Hoje, graças ao trabalho iniciado por Bell, e ao desenvolvimento da capacidade experimental, a situação é outra. E a discussão de questões dita de “interpretação da mecânica quântica”, passaram a fazer parte das atividades de pesquisa em física.
[1] O artigo Schroedinger tem uma versão traduzida para o inglês em 1980 por J.D. Trimmer “The Present Situation in Quantum Mechanics: A Translation of Schrödinger’s “Cat Paradox” Paper”. Proceedings of the American Philosophical Society. 124 (5): 323–338. JSTOR 986572
[2] O artigo de Einstein, Rosen e Podolsky pode ser acessado livremente em https://journals.aps.org/pr/abstract/10.1103/PhysRev.47.777
[3] T. Norsen, Foundation of Quantum Mechanics, Springer, 2017.
[4] O. Freire Jr. O centenário debate sobre a interpretação e os fundamentos da Física Quântica. Revista Brasileira de Ensino de Ciências e Matemática, v. 4, n. 3, 2 set. 2021. http://seer.upf.br/index.php/rbecm/article/view/12911/114116177
[5] Um exemplo para quem estudou física newtoniana é a colisão de duas partículas, que quando utilizamos a lei de conservação do momento total, faz com que conhecendo o momento de uma partícula, o momento da outra partícula fica automaticamente determinada. Ou o caso de um sistema de duas partículas com energia total conservada. Basta medir a energia de uma das partículas e a outra ja fica determinada.
[6] Esta necessidade de manter a ordem em um produto, pode parecer estranho, mas em situações cotidianas, a ordem de execução é importante. Imaginemos a atividade de “passar sabão em um prato para lavar” e “enxaguar o prato”. Se mudarmos a ordem para “enxaguar o prato” e depois “passar sabão no prato”, o resultado será diferente do caso anterior!
[7] Vamos assumir que seja possível fazer a separação, de forma que seja possível escrever Xy+Yx=(aX+bY)(cx+dy), com a,b,c,d números e você não precisa se preocupar com a ordem que aparece . Desenvolva o produto no lado direito da equação, obtendo
Xy+Yx=(abXx+acXy+bcYx+bdYy) . Como os dois lados tem que ser iguais, devemos ter ab=0,ac=1,bc=1,bd=0. Não podemos escolher a=0, pois não satisfaz a equação ac=1, então devemos escolher b=0. Mas esta escolha não satisfaz a condição bc=1. Ou seja, nenhuma escolha é possível. Isto implica que a hipótese inicial é falsa.