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Cristal do tempo: que coisa é esta?

Olá, professor!

Tenho visto diversas matéria sobre o “cristal do tempo” e sempre me restam dúvidas. O CREF poderia fazer uma postagem sobre o tema? Agradeço.

Respondido por: Prof. Fernando Kokubun (FURG) - https://www.fisicaseteemeia.com.br/2021/

Para quem acompanha noticiários de ciências e tecnologias, deve ter escutado ou lido o termo “cristal do tempo” em algum noticiário, seja na televisão ou em algum site.    Mas o que seria um cristal do tempo? Alguma pedra com propriedades místicas? Algo para viajar no tempo? Não, nada disso, é um assunto muito interessante e fundamentada em pesquisas bem realizadas, e um assunto que pode gerar uma nova compreensão da física de sistemas com muitos corpos.

Vamos começar fazendo um relato rápido da cronologia (linha do tempo) da ideia do cristal do tempo. Em 2012    Franz Wilczek (*)   comenta após considerar o papel da quebra de simetria em teorias físicas que “(…) é natural levantamos a questão se a simetria de translação temporal pode ser quebrada espontaneamente em um sistema descrito pela mecânica quântica.”  E para a esta questão, o autor afirma que sim, e sistemas que apresentam este tipo de comportamento, denominou de cristal do tempo [1].  Após a publicação do artigo, Patrick Bruno apresentou argumentos que invalidavam a ideia do cristal do tempo em modelos semelhantes ao utilizado por Wilczek. Alguns anos depois Watanabe e Oshikawa, apresentaram uma formulação mais geral do que seria um cristal do tempo, e demostraram que não poderia existir na forma proposta por Wilczek.   Mas a ideia da sua existência não foi descartada, e com modificações na proposta original, a ideia do cristal do tempo ganhou um novo fôlego, e passou a ser estudado como um novo estado da matéria [2].  Após sucinta apresentação histórica, a pergunta é: mas o que é um cristal do tempo?

Podemos dizer que um cristal do tempo é um sistema que se repete no tempo. No entanto, esta é uma explicação extremamente simplificada, pois muitas coisas possuem esta propriedade, e são conhecidos muito antes do artigo de 2012 que apresentou o conceito do cristal do tempo.  Um exemplo é um relógio, ou a sequência dia-noite, e muitos outros que estamos acostumados, e estes casos cotidianos, apesar de serem padrões que repetem no tempo, não são classificados como cristal do tempo. Então, precisamos de mais alguma informação para caracterizar o termo.  Podemos começar com uma definição um pouco mais  precisa, e afirmar que:  um cristal do tempo é um sistema físico no qual a simetria por translação temporal é espontaneamente quebrada.  

Mas, exceto para quem estuda física (e mesmo assim, depende da  área de atuação), a frase acima não ajuda muito, e com certeza não é adequada para explicar o que é o cristal do tempo para  não físicos.  Uma definição precisa, apesar de ser importante, nem sempre nos ajuda na compreensão de algo novo. Principalmente se não estamos acostumados com os termos específicos do assunto em estudo.  Então, como um primeiro passo vamos explicar os significados dos termos simetriatranslação temporal e espontaneamente quebrada na frase que define o cristal do tempo.

O termo simetria, para a física está associado a uma propriedade que se mantém ao realizamos algum tipo particular de transformação (modificação) no sistema em estudo. A existências de simetrias, nos ajuda a resolver alguns problemas, e explicar muitos fenômenos físicos importantes. Algumas simetrias podem ser visualizadas, em especial as relacionadas com objetos geométricos, outras são mais abstratas e sem possibilidades de visualização.  Vamos considerar um exemplo que podemos visualizar e que está diretamente relacionado com o nosso assunto. Inicialmente, vamos pensar em um sistema que é apenas um espaço vazio, e escolher arbitrariamente um ponto neste espaço. Sendo um espaço vazio, qualquer ponto que escolhermos, não fará diferença: o espaço vai ser exatamente o mesmo, quando visto por qualquer um dos pontos no espaço. Podemos nos deslocar do ponto inicial escolhido, para qualquer direção e por qualquer distância, e mesmo assim o espaço vai ser o mesmo. Neste caso dizemos que nosso espaço é invariante por translação espacial (qualquer ponto no espaço é igual a qualquer outro). Aqui a transformação é o “deslocar no espaço” e a simetria tem o nome de “invariância por translação espacial”. A figura 1 a seguir, ilustra esta invariância por translação espacial, para o caso de um sistema que é um plano vazio (é importante imaginar que o plano é infinito, sem limites ou bordas).

O sistema vai ser independente de estar no ponto 1 ou ponto 2 (é sempre bom ressaltar, que devemos imaginar o plano infinito, em todas as direções), isto é, vai ser o mesmo, continua sendo um sistema vazio.

Vamos agora imaginar que nosso espaço esteja preenchido com alguns objetos todos iguais (figura 2), e agora nosso sistema consiste do espaço plano com alguns objetos. Neste caso, nosso sistema perde a invariância por translação espacial, pois pontos diferentes do espaço, apresentam características diferentes, por exemplo em torno do círculo com circunferência vermelha tem menos círculos do que em torno do círculo com contorno preto.

Nosso sistema agora perdeu a sua simetria original, e diferentes pontos do plano, possuem propriedades diferentes. Nosso sistema perdeu a simetria de translação espacial.

Vamos fazer uma outra modificação, considerar nosso plano ainda preenchido com alguns objetos (todos iguais), mas agora de forma ordenada, como na figura 3 (devemos imaginar infinitos objetos   separados pelas mesmas distâncias dos seus vizinhos, pois na figura eu desenhei apenas alguns objetos). Este sistema  também não tem a mesma invariância por translação espacial da figura 1, mas notemos que é diferente da figura 2.  Como os objetos estão igualmente espaçados (na figura 3, escolhemos um espaçamento igual na horizontal e na vertical , e que representamos pela letra ), ao deslocarmos uma distância na horizontal por d, 2d, 3d … nada se modifica (e igualmente se deslocarmos por d, 2d, 3d …. na vertical, e também no sentido negativo, isto é, -d,-2d,-3d, … em qualquer direção). Isto quer dizer que nosso sistema ainda possui invariância por translação espacial, SE, o deslocamento for um múltiplo inteiro de  d (a distância entre os pontos) na horizontal ou na vertical. O que mudou? Na figura 1 a invariância por translação espacial ocorria para deslocamentos de qualquer  tamanho, e dizemos que é invariante por translações espaciais contínuas. Na figura 3, a invariância ocorre apenas para deslocamentos que sejam múltiplos da distância , e dizemos que é invariante por translações espaciais discretas.  Agora podemos apresentar a nossa primeira definição: um cristal é uma estrutura de arranjo de átomos que apresentam simetrias por translação espacial discreta.

Os cristais apresentam uma repetição da sua estrutura básica, apresentam uma periodicidade espacial (isto é, possuem uma estrutura que se repete no espaço, quando deslocado por uma certa distância – o período. No nosso exemplo acima, o período espacial é a distância d). Um cristal real, não se repete indefinidamente, mas a repetição ou o arranjo ordenado de átomos dentro da sua estrutura é uma das suas características mais importante. Além da simetria simples que apresentamos, existem outros tipos de simetrias para os cristais, mas para o nosso propósito, basta a noção de que um cristal é uma estrutura que se repete periodicamente no espaço. Com isto, dizemos que 

um cristal é um sistema que apresenta simetria por translação espacial discreta. Os objetos, que são átomos, em um cristal, estão regularmente espaçados.  

translação temporal, é um deslocamento agora no tempo ao invés de um deslocamento no espaço. Na física, a simetria por translação temporal tem consequência bem interessantes. Ter simetria por translação temporal, significa que o sistema não modifica com o tempo, e uma consequência importante desta simetria é a conservação de energia. Dizemos que um sistema que possui invariância por translação temporal apresenta uma grandeza conservada, e esta grandeza é a energia. Um assunto que é interessante a respeito do tempo, é a chamada seta do tempo, isto é, porque o tempo flui apenas em um sentido. Mas este é um assunto para outro texto. Agora vamos tentar explicar o termo “quebra espontânea de simetria”.

Retornando ao nosso cristal, com átomos espaçados por uma distância d, vamos considerar dois átomos quaisquer que estejam na rede. Para simplificar vamos considerar que estejam na mesma linha horizontal. Já sabemos que a estrutura se repete a cada translação discreta d.  A distância entre dois átomos será então um múltiplo inteiro de do espaçamento d, digamos 2(ver figura 4). Agora se deslocarmos cada um dos átomos uma mesma distância R, não vamos alterar a distância entre os dois átomos (ver a figura 4a e a figura 4b, onde deslocamos todos os átomos pela mesma distância horizontal R).  E isto deve ser válido para quaisquer pares de átomos, mesmo que não estejam na mesma linha horizontal! (Se você já estudou vetores, isto pode ser mostrado de maneira bem simples).

E o que tudo isto tem a ver com quebra espontânea de simetria? Vamos considerar que agora nosso sistema físico seja descrito por um modelo teórico onde a interação entre os átomos depende apenas da distância entre elas. Neste caso, se efetuarmos uma transformação onde todos os átomos são deslocados por uma mesma distância, a interação não será alterada (pois não vai mudar a distância entre os átomos). Este modelo não se altera com uma translação espacial contínua, isto é, possui uma simetria de invariância sob translações espaciais contínuas. Mas o cristal não tem a simetria de translação espacial contínua, mas possui a simetria de translação espacial discreta.  Quando isto ocorre – o modelo teórico possui uma simetria, mas o sistema não possui a mesma simetria – dizemos que ocorreu uma quebra espontânea de simetria [3].

Agora podemos retornar ao nosso cristal do tempo, e a proposta original de Wilczek, que é importante ressaltar, abordou sistemas no seu estado fundamental, isto é, no estado de mais baixa energia. Estes sistemas, pela própria definição de estado fundamental, não variam com o tempo. Ou dito de outra forma, em qualquer instante do tempo, são iguais, possuindo assim, uma invariância por translação temporal. Wilczek, argumenta que é possível construir um sistema que mesmo estando no seu estado fundamental, pode apresentar variações que são periódicas no tempo. Ele utiliza no artigo os mesmos argumentos que definem o processo de quebra espontânea de simetria que forma um cristal, mas agora considerando uma translação no tempo e não no espaço. E para ocorrer esta quebra de simetria, o sistema passaria a ter um movimento eterno, sem dissipação, e como afirma o próprio Wilczek “perigosamente semelhante a um moto perpétuo”. Mas como comentado logo no  início deste texto,  foi demonstrado posteriormente que a proposta de cristal de Wilczek, não esta correta, e este perigo de se assemelhar com um moto perpétuo, foi definitivamente descartado.

O chamado teorema da impossibilidade (no-go theorem), apresentada por Bruno, Watanabe e Oshikawa [2] afirma que   cristais do tempo no estado fundamental (ou em estados de equilibrio) não podem existir, mas não afirma que cristais do tempo não podem existir. Sem a restrição de estar em equilíbrio, e com  uma definição mais precisa de cristal do tempo (com a inclusão de critérios mais elaborados do que a utilizamos no inicio do texto) novas pesquisas começaram a ser realizadas sobre o assunto, considerando o cristal do tempo, como um novo tipo de estado da matéria. E em 2021, menos de 10 anos após a proposta inicial, foi experimentalmente verificado a formação de um cristal do tempo [4,5], e a sua existência deixou de ser apenas uma construção teórica interessante.

Quais possíveis aplicações do cristal do tempo? Ainda não sabemos, somente com o tempo (sem a intenção de fazer um trocadilho) poderemos responder melhor sobre esta possibilidade de aplicações.   Mas o estudo de fenômenos de muitos corpos fora do equilíbrio, ganhou um assunto muito especial para ser estudado, e independente de futuras aplicações, vamos entender melhor o nosso Universo.

 

[*]  Franz Wilczek  ganhou o prêmio Nobel de Física em 2004, de acordo com o comitê  Nobel pela  “descoberta da liberdade assintótica na teoria de interação forte” .

[1] F. Wilczek. Quantum Time Crystal ,Phys.Rev.Lett. 109 (16) 160401, para um versão com acesso  livre , ver em   https://arxiv.org/abs/1202.2539 . No artigo,o trecho que cito aparece como  “Symmetry and its spontaneous breaking is a central theme in modern physics. Perhaps no symmetry is more  fundamental than time-translation symmetry, since time-translation symmetry underlies both the reproducibility of  experience and, within the standard dynamical frame-works, the conservation of energy. So it is natural to consider the question, whether time-translation symmetry  might be spontaneously broken in a closed quantum-mechanical system. That is the question we will consider, and answer affirmatively, here.”

[2] Para quem tiver interesse,  este artigo de revisão  Lingzhen Guo and Pengfei Liang Condensed Matter Physics em Time Crystal,  New J. Phys. 22 075003 , 2020 é de acesso livre em https://iopscience.iop.org/article/10.1088/1367-2630/ab9d54 ou Krzysztof Sacha and Jakub Zakrzewski, Time Crystal: a review,   Rep. Prog. Phys. 81 016401, 2018, que tem acesso livre em  https://arxiv.org/pdf/1704.03735.pdf , ou V. Khemani , R. Moessner c , S. L. Sondhi , A Brief History of Time Crystals, tem acesso livre https://arxiv.org/abs/1910.10745 .  Os artigos de Bruno , Watanabe e Oshikawa, são  P.Bruno. Impossibility of Spontaneously Rotaing Time Crystal: A no-go theorem. Phys.Rev.Lett,111,070402, 2013; acesso livre em https://arxiv.org/abs/1306.6275 ;  H. Watanabe e M.Oshikawa. Absence of Quantum Time Crystals, Phy.Rev.Lett, v114, 251603, 2015; acesso livre em https://arxiv.org/abs/1410.2143 .

[3] Existem alguns detalhes que omiti, e com certeza quem tem formação em física, vai ficar aborrecido com as omissões. Mas, entendo que para os não físicos, os detalhes (que são importantes!), podem acabar causando mais confusões do que esclarecimento.

[4] Além do grupo do Google, outros grupos também relataram experimentos que comprovando um comportamento que justifica a existência de um cristal do tempo. No caso da Google, o experimento tem seu mérito por tratar de um sistema maior, e talvez o mais interessante, a utilização da estrutura de um computador quântico a Google havia acabado de construir e testar.

[5] Um fato interessante do modelo que foi testado experimentalmente, é de que no artigo originalmente submetido para a publicação, não havia referência aos cristais do tempo. Mas durante o processo de submissão (em 2015), um dos revisores chamou a atenção dos autores, de que os resultados se encaixavam na descrição de um cristal do tempo. Este relato pode ser lido por exemplo em V. Khemani , R. Moessner c , S. L. Sondhi , A Brief History of Time Crystals, tem acesso livre https://arxiv.org/abs/1910.10745

 


4 comentários em “Cristal do tempo: que coisa é esta?

  1. Hamilton Klimach disse:

    Creio que, na fig 3, para que realmente pareça que o sistema é espacialmente invariante para deslocamentos discretos, as “bolinhas” deveriam preencher todo o espaço, dando a ideia de uma estrutura infinita, como se considera idealmente um cristal.

    • FERNANDO KOKUBUN disse:

      No corpo do texto comentei , “na figura 3 (devemos imaginar infinitos objetos separados pelas mesmas distâncias dos seus vizinhos, pois na figura eu desenhei apenas alguns objetos). “. Em uma primeira versão, eu havia feito isso, colocado mais objetos , mas no meu desenho ( e confesso que não sou um bom desenhista) ficou confuso, assim , eu optei por um desenho com menos repetições e adicionei a explicação textual . Talvez não tenha sido uma opção muito adequada. Agradeço pela sugestão.

  2. Vandré Fardin disse:

    Um assunto muito complexo que ganha clareza nas suas palavras professor!! Vale muito a pena a leitura! Parabéns!

  3. HORACIO ALBERTO DOTTORI disse:

    Excelente artigo do professor Fernando Kokubun. Valeu a pena ler.

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