A pandemia do coronavírus e a modelagem matemática
1 de maio, 2020 às 21:59 | Postado em Estatística e probabilidade, incertezas experimentais, Matemática
Respondido por: Profa. Maria Cristina Varriale (IME-UFRGS)Nestes tempos de pandemia tenho visto diversos textos e vídeos na web que modelam a pandemia com o modelo SEIR. Quais são as limitações deste modelo para esta epidemia? Existe algum modelo epidemiológico alternativo que possa ser mais adequado?
O modelo SEIR é um modelo compartimental, no qual, de acordo com o estado do indivíduo com relação à doença, este é classificado em um dos seguintes “compartimentos”: Suscetíveis, Expostos, Infecciosos e Recuperados.
Suscetíveis são todos os indivíduos que podem ficar doentes. Em sua versão original, este modelo prevê uma única rota de transmissão da doença, a saber, a transmissão direta de um Infeccioso a um Suscetível, e este então, passará de suscetível para Exposto (indivíduo que está infectado, mas não pode transmitir a doença) e assim permanecerá durante um tempo de incubação da doença, após o qual passa a ser Infeccioso. Um Infeccioso transmite a doença durante o seu tempo de recuperação, tornando-se depois disso um Recuperado (imune à doença), exceto se ele vier a morrer antes disso.
Diversos modelos têm sido construídos a partir do modelo acima descrito, com modificações adequadas, de modo a descrever melhor as informações divulgadas por profissionais da saúde a respeito da propagação de doenças infecciosas específicas. No caso da COVID-19, causada pelo Coronavírus, sabe-se que a transmissão não ocorre apenas a partir de um Infeccioso, mas também a partir de um Infectado ainda no período de incubação, bem como através do Ambiente, características que não estão contemplados pelo modelo SEIR básico acima.
Entre os vários modelos que vêm sendo propostos para a COVID-19, apresentaremos a seguir uma síntese de um trabalho científico recentemente publicado, que visa descrever a sua propagação em Wuhan (China), através de um modelo que inclui estas três rotas de transmissão, e parâmetros que variam com a ocupação do compartimento de origem do vírus, como reflexo das medidas que foram adotadas na China para reduzir a propagação da doença.
Os valores dos parâmetros são ajustados de modo a reproduzir os dados publicamente divulgados, e para isso, é de fundamental importância conhecer o número de pacientes realmente infectados. Aí reside a primeira dificuldade, visto que o número de infectados oficialmente divulgado é apenas daqueles que foram notificados positivos a partir da entrada nos hospitais, que é sabidamente muito menor que o número de efetivamente infectados. Além disso, ao pensar em utilizar o modelo para previsões, esbarramos com o problema de não saber se estes valores, determinados para os parâmetros a partir dos dados do “passado”, continuarão os mesmos com o passar do tempo.
Um modelo matemático contínuo para descrever a dinâmica da COVID-19
Quem de nós deixa passar um dia sem se atualizar quanto às informações oficialmente divulgadas sobre o andamento da propagação desta pandemia? Na verdade, queremos e precisamos saber muito mais do que isso… Gostaríamos de poder nos situar quanto ao momento no qual nos encontramos, com relação à dinâmica a longo prazo dessa doença, não é mesmo? Com este objetivo, muitos pesquisadores têm se debruçado nos últimos meses sobre informações divulgadas por médicos e infectologistas a respeito dos principais mecanismos envolvidos na propagação do coronavírus (agente infeccioso da doença COVID-19), e têm proposto modelos matemáticos tentando explicar, prever e controlar esta pandemia.
No estudo que apresentaremos a seguir [Yang e Wang, 2020], publicado em 11/03/2020, os autores (pesquisadores do Depto. de Matemática da Universidade do Tennessee – USA) fizeram uso de dados coletados em Wuhan (epicentro da doença na China) no período de 23/01/2020 a 10/02/2020, e propuseram um modelo compartimental para descrever a dinâmica desta doença.
Em um modelo compartimental, a população (humana ou não) hospedeira do agente epidemiológico é dividida em “compartimentos”, cuja ocupação irá variar com o tempo, de acordo com hipóteses previamente estabelecidas. Considerando a transferência entre compartimentos como um fenômeno contínuo, estas hipóteses são matematicamente formuladas especificando as diversas contribuições (positivas para acréscimos, e negativas para decréscimos), para a taxa de variação (indivíduos por unidade de tempo) da ocupação de cada compartimento em cada instante de tempo.
Ao modelo proposto por Yang e Wang, associamos o fluxograma apresentado na Figura 1, envolvendo cinco compartimentos, nos quais pode estar hospedada alguma concentração de vírus. Destes, quatro (S, E, I, R) são ocupados por hospedeiros humanos, e V é constituído pelo ambiente, a saber:
S: suscetíveis – humanos que podem contrair a doença, seja por contato com algum humano de E (infeccioso assintomático), ou com algum humano de I (infeccioso sintomático), ou com o ambiente contaminado V;
E: infecciosos assintomáticos – humanos que estão infectados, mas ainda no período de incubação; estes também podem transmitir a doença a algum suscetível; decorrido o tempo de incubação, passam para o compartimento I;
I: infecciosos sintomáticos – podem transmitir a doença a algum suscetível; decorrido um tempo de recuperação, passam para o compartimento dos recuperados, exceto aqueles que antes disso vierem a ter uma morte induzida pela doença;
R: recuperados – estão imunes; não irão contrair nem transmitir a doença;
V: concentração do vírus no ambiente contaminado (reservatório ambiental).
Comparando com o conhecido modelo SEIR básico, que supõe apenas uma rota de transmissão da doença (de I para S), o modelo SEIRV proposto pelos autores acrescenta as rotas de transmissão de E para S, e de V para S, de modo a contemplar informações fornecidas por médicos e infectologistas que estudam a dinâmica da COVID-19. Tanto indivíduos de E quanto indivíduos de I podem aumentar a carga viral do reservatório ambiental V.
No fluxograma apresentado na Figura 1, setas indicam taxas de variação, positivas ou negativas, (número médio de indivíduos por unidade de tempo) na ocupação de um compartimento. O modelo matemático correspondente decorre do fato de a taxa de variação do número N(t), de indivíduos em algum compartimento em um instante de tempo t, ser justamente a derivada de N(t) em relação a t. Assim, podemos escrever uma equação diferencial (porque envolve derivada), para a ocupação de cada compartimento, como segue:
O sistema de equações diferenciais (1) – (5) envolve os seguintes parâmetros:
Λ: taxa de entrada em S (nascimentos ou imigrações);
μ: taxa per capita de morte de humano por causa natural ou outras doenças;
(1/α): tempo médio de incubação;
ω: taxa per capita de morte induzida pela doença;
(1/γ): tempo de recuperação;
ξ1: taxa de acréscimo de vírus no ambiente V, por humano em E;
ξ2: taxa de acréscimo de vírus no ambiente V, por humano em I;
σ: taxa de remoção de vírus do ambiente, por vírus em V;
βΕ(Ε): coeficiente, na taxa de transmissão direta do vírus, de um humano em E para um humano em S;
βI(I): coeficiente, na taxa de transmissão direta do vírus de um humano em I para um humano em S;
βV(V): coeficiente, na taxa de transmissão indireta do vírus presente no ambiente V para um humano em S.
Outra especificidade do modelo proposto é o fato de que os coeficientes βΕ(Ε), βI(I), βV(V), presentes nas 3 taxas de transmissão da doença (de E, ou de I ou de V) para um humano em S, levando-o para E (veja o fluxograma), envolvem uma constante positiva c ajustável, de modo que estes variem de acordo com
Estas são funções decrescentes da ocupação do compartimento de origem do vírus, cujo comportamento típico ilustramos na Figura 2(a). Observe, na Figura 2(b), que a contribuição por suscetível, para a taxa de aumento do número de indivíduos em E, é o produto de um dos coeficientes acima pela ocupação do compartimento de origem, e este produto crescerá cada vez mais lentamente, à medida que esta ocupação aumenta, tendo como limite o valor βΕ(0)/c, ou βI(0)/c, ou βV(0)/c, respectivamente. Esta hipótese reflete o efeito das medidas (quarentena, distanciamento social, estrito isolamento…), que foram adotadas na China, sob controle rigoroso, quando o nível de infecção mostrou-se alto, visando a reduzir o contato de suscetíveis com indivíduos infectados e com ambiente contaminado, e portanto, a propagação da doença.
A evolução temporal das ocupações de cada compartimento é obtida através da resolução numérica do problema constituído pelo sistema de equações diferenciais proposto, juntamente com condições iniciais (valores em t = 0). A solução depende evidentemente dos valores atribuídos aos parâmetros presentes no sistema. A confiabilidade das previsões depende não apenas da qualidade do modelo, mas também da fidedignidade dos dados oficialmente divulgados, a partir dos quais são calculados os valores dos parâmetros envolvidos. Com os valores adotados por Yang e Wang [2020], são traçados os gráficos apresentados na Figura 3, para as ocupações de cada compartimento, para t de 0 a 200 dias. A previsão que os autores obtiveram, a partir do gráfico para I(t), curva vermelha, foi de que o nível de infecção continuaria aumentando por mais 80 dias, alcançaria um pico em aproximadamente 45.000 infecções e depois diminuiria lentamente tendendo a um equilíbrio que não é livre da doença, mas sim endêmico.
Da determinação dos equilíbrios e da análise de sua estabilidade, os autores mostram que as soluções de fato convergem para o equilíbrio endêmico cujas componentes confirmam os resultados da resolução numérica. Deste estudo, o número reprodutivo básico: R0, que quantifica o risco total de infecção para o surto da doença, é obtido como uma soma de três expressões envolvendo parâmetros do modelo, que correspondem a cada uma das rotas de transmissão da doença, a saber, E → S, I → S e V → S. A contribuição da rota E → S foi a maior delas, fato que pode ser justificado pela facilidade de assintomáticos espalharem inconscientemente a infecção para outras pessoas com contato próximo; por outro lado, aquela de I → S foi a menor, certamente devido à política severa de isolamento adotada para os indivíduos com sintomas.
Complementarmente, os autores verificam como seria a previsão se os coeficientes β nas taxas de transmissão fossem considerados constantes, ou seja, com c = 0 no denominador das equações (6). Para isso, retornando aos dados oficialmente divulgados, eles recalculam os valores dos parâmetros do modelo correspondente, e então obtêm a solução cujo gráfico visualizamos na Figura 4. O nível de infecção com um pico muito mais alto que o da Figura 3, segundo os autores claramente não realístico, constitui uma superestimativa da severidade epidêmica em consequência de não terem sido levadas em consideração as fortes medidas de controle que lá haviam sido adotadas.
Referência:
[Yang e Wang, 2020] YANG, C. e WANG, J.; A Mathematical Model for the Novel Coronavirus Epidemic in Wuhan, China. Mathematical Biosciences and Engineering, v. 17, n. 3, p. 2708-2724, 2020.
Excelente aula da professora Varriale. Muito obrigado. Vê-se que o Vírus tem algumas peculiaridades surpreendentes , se formos analisar como a adaptação/evolução chega probabilísticamente a encontrar seu caminho de sobrevivência. Igualmente admirável ver como a mente humana pode traduzir este comportamento num conjunto de equações diferenciais.
Lisonjeada com teu elogio, Prof. Dottori, e feliz por ter transmitido um pouco do fascínio que a construção e a análise de um modelo matemático, constituído por um sistema de equações diferenciais, nos proporcionam!
Apreciei a matéria,
Sobrevivi à gripe asiática em 1958. Levou-me a delírios. Vi fogo! Não mediram minha febre. Com certeza passou bem dos 40 …. e continuo bem! Devo estar imunizado! Será que sou transmissor? Só terminará quando todos a contraírem?