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Validade do princípio da independência dos movimentos de Galileu

Conforme se observa no vídeo dos Caçadores de Mito (aqui o vídeo) as duas balas atingem o solo em momentos diferentes, embora a diferença seja muito pequena. A expectativa era de que as duas balas atingissem o solo ao mesmo tempo em acordo com o “princípio da independência dos movimentos de Galileu”.

Essa diferença mínima poderia ser explicada por alguma possível força de sustentação gerada durante o movimento horizontal? Ou mesmo arrasto? Até mesmo erro sistemático na experiência?

Respondido por: Prof. Fernando Lang da Silveira - IF-UFRGS

A resposta aos questionamentos é mais complexa do que parece.

Inicialmente cabe notar que pela altura de queda (91 cm) das balas, caso ambas estivessem em queda livre, o tempo para atingir o solo seria cerca de 430 ms. A diferença de tempo entre a chegada das duas balas foi cerca de 40 ms, portanto esta diferença apesar de imperceptível a olho nu, não é desprezível pois representa cerca de 10% do tempo esperado.

Para que os dois projéteis atinjam o solo simultaneamente, os movimentos horizontal e vertical do projétil devem ser separáveis, isto é, o movimento em cada um dos dois eixos (eixo horizontal e no eixo vertical) não deve depender da posição, da velocidade, da aceleração (ou de qualquer outra variável) no outro eixo. É nesse contexto que vale o “princípio da independência dos movimentos de Galileu”. A independência dos movimentos, portanto, não é válida universalmente mas é uma excelente aproximação em muitas situações cinemáticas e dinâmicas discutidas em disciplinas iniciais de Física.

No caso em pauta, se os dois projéteis estivessem no vácuo e em um sistema de referência inercial (sistema de referência sem aceleração), eles de fato cairiam pela mesma altura no mesmo intervalo de tempo se ambos os movimentos iniciarem simultaneamente. E este tempo seria, como notado antes, cerca de 430 ms para 91 cm de altura.

Inicialmente consideremos que o sistema de referência seja inercial mas que haja força de arrasto como aquela que acontece quando projéteis se movimentam através do ar. Se a força de arrasto é proporcional ao quadrado da velocidade em relação ao ar (é o caso do projétil disparado por arma de fogo) as equações dinâmicas que descrevem o movimento nos dois eixos não são separáveis. Mais detalhes sobre o tema se encontra em Comentário crítico sobre o artigo … .

Assim sendo, rigorosamente, mesmo que os dois projéteis sejam lançados da mesma altura no mesmo instante, eles não atingirão o solo no mesmo instante. Se a altura é pequena como no caso em questão, a diferença de tempo para atingir o solo deve ser pequena. O projétil disparado pela arma de fogo deve chegar um pouco depois ao solo do que o outro projétil que simplesmente foi deixado cair pois a aceleração no eixo vertical é menor do que a aceleração da gravidade devido à força de arrasto. Neste caso, conforme está demonstrado em  Comentário crítico sobre o artigo … , a aceleração no eixo vertical depende também da componente da velocidade no eixo horizontal o que leva a invalidar o “princípio da independência dos movimentos de Galileu”.

A situação se complica mais ainda quando se considera que o sistema de referência (que é solidário à superfície da Terra) rigorosamente está acelerado, é não-inercial. Dependendo da orientação da velocidade inicial do projétil pode existir uma componente da força inercial de Coriolis na vertical. E esta componente pode estar orientada para cima ou para baixo dependendo da orientação inicial do disparo, produzindo um atraso ou um adianto na chegada do projétil ao solo. Veja mais detalhes em SNIPER 101 Part 73 – Coriolis Effects on Rifle Bullets.

A conclusão é que a diferença de tempo entre a chegada das duas balas no solo poderia ser causada por efeitos devidos ao arrasto do ar ou/e por efeitos não-inerciais ou/e até por algum outro erro experimental.

O importante nesta discussão é notar que o “princípio de independência dos movimentos de Galileu” não é universal e que conhecemos os seus limites de validade. Não o podemos assumir de forma tácita e acrítica como às vezes ocorre.

“Docendo discimus.” (Sêneca)

 


Um comentário em “Validade do princípio da independência dos movimentos de Galileu

  1. Filipe Brandao disse:

    Obrigado Prof. Lang e equipe do CREF. Excelente explicação.

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