Homeostase Quântica Informacional: existe de fato?
24 de agosto, 2021 às 17:14 | Postado em Mecânica quântica, Mitos, empulhações, notícias falsas, VeriFísica - Sociedade Brasileira de Física
Respondido por: Marcelo Takeshi Yamashita (IFT-UNESP), Ricardo D'Elia Matheus (IFT-UNESP), Alexandre Reily Rocha (IFT-UNESP) e Carlos Orsi (Instituto Questão de Ciência)Gostaria de saber qual é a posição da Sociedade Brasileira de Física sobre o artigo Envelhecendo com saúde emocional, mental e física por meio da Homeostase Quântica Informacional.
Agradeço antecipadamente a resposta.
Principais afirmações que foram checadas no artigo Envelhecendo com saúde emocional, mental e física por meio da Homeostase Quântica Informacional são as seguintes:
- A física quântica estuda os sistemas físicos que estão além da percepção sensorial comum / Os sistemas físicos quânticos não estão em contato direto com o mundo da percepção habitual
- Na teoria quântica, algumas propriedades são denominadas de ‘variáveis ocultas’, compondo um conjunto de propriedades não conhecidas
- Utilização dos termos ‘existência de uma ordem oculta, implícita, no universo, que seria a realidade primária’, ‘processos quântico-informais inteligentes’, ‘potencial quântico com atividade de significação’, ‘universo inteligente (informacional) funcionando como uma mente’.
- Para cada nível de manifestação da informação, a constante de Planck assume valores diferentes / a constante de Planck assume valores que variam de 0 a 1
A crítica a seguir restringe-se unicamente à parte relacionada à física no artigo “Envelhecendo com saúde emocional, mental e física por meio da Homeostase Quântica Informacional”. Buscamos estabelecer com clareza a relação entre as afirmações feitas pelo autor e aquilo que físicos do mundo inteiro chamam de Mecânica Quântica, e que coloquialmente o público geral costuma chamar de Física Quântica, uma teoria física já bem estabelecida e testada por meio de rigorosos métodos científicos.
Na página 116 é possível ler que “a física quântica estuda os sistemas físicos que estão além da percepção sensorial comum” ou que “os sistemas físicos quânticos não estão em contato direto com o mundo da percepção habitual”. Isso constitui uma imprecisão, já que podemos afirmar com uma boa probabilidade de acerto que todos já tiveram contato com uma lâmpada fluorescente ou já utilizaram um apontador laser em apresentações, e ambos são aparelhos que funcionam em decorrência de fenômenos quânticos. Podemos ainda mencionar que da ordem de 30% do PIB americano é baseado em aplicações diretas da mecânica quântica [1]. Este parágrafo faz-se necessário para afastar qualquer tentativa de tomar a mecânica quântica por algo intangível, próximo ao esoterismo, prática repreensível em qualquer texto científico.
A mecânica quântica (ou física quântica) recebeu este nome para se distinguir da mecânica criada por Isaac Newton, chamada de newtoniana ou clássica. A mecânica quântica teve seu início no começo do século XX, e revelou uma série de regras segundo as quais o mundo dos prótons, elétrons, átomos e núcleos atômicos funciona. A mecânica quântica talvez seja uma das teorias mais testadas na física e, embora seu nome tenha se tornado bastante popular entre as pessoas em geral, podemos arriscar que a imensa maioria do público não sabe exatamente o que ela de fato diz, ou significa.
Mais adiante, na mesma página 116, o autor menciona que “na teoria quântica, algumas propriedades são denominadas de ‘variáveis ocultas’, compondo um conjunto de propriedades não conhecidas”. A hipótese de que a mecânica quântica possuiria variáveis ocultas foi uma tentativa de trazer algum determinismo às variáveis quânticas. Essa hipótese já caiu por terra através de diversos experimentos que mostram uma violação da desigualdade de Bell.
A natureza possui determinadas regras que não podem ser violadas. Ela impede que as propriedades físicas de alguns sistemas quânticos possam ser determinadas com uma precisão infinita. Por exemplo, se alguém perguntar onde está localizada uma certa caneta é possível dizer exatamente onde ela está. Com um elétron, porém, isso não é possível de se dizer com exatidão. Isso faz com que sempre tenhamos apenas uma distribuição de probabilidades associada a uma determinada grandeza.
Alguns físicos famosos, no início do séc. XX, não se conformavam com a questão probabilística inerente à mecânica quântica. A tentativa, porém, de restabelecer a possibilidade de exatidão nessas grandezas físicas, mesmo que representada por variáveis ocultas locais, demandaria que essas grandezas satisfizessem uma inequação que ficou conhecida como desigualdade de Bell. Como já mencionado acima, experimentos precisos já mostraram que não existe dúvida da violação da desigualdade de Bell.
Este artigo [2] descreve um experimento, realizado em 2017, utilizando fótons provenientes de estrelas para mostrar a violação da desigualdade de Bell. O artigo foi publicado na mais prestigiosa revista do mundo especializada em física, a Physical Review Letters. Incidentalmente, por causa da distância das estrelas, esse experimento mostra também que, se houve influência da consciência de alguém ou de alguma coisa no experimento, isso deve ter ocorrido há 600 anos. Obviamente, algo absurdo. Um vídeo explicativo (em inglês) desse experimento, com o autor do artigo, pode ser encontrado aqui [3].
Em contraste ao artigo [2], o artigo criticado neste texto usa uma única referência para embasar as suas afirmações sobre a “Teoria Holoinformacional da Consciência” e a “Quântica Informacional”, a saber: Di Biase e Amoroso, 2004, publicado pela editora Vozes, de Petrópolis (RJ). Trata-se apenas de um livro, cujo conteúdo não é proveniente de publicação técnica respeitável que tenha sido submetida a revisão por pares. Neste livro, o autor toma trabalhos realizados por físicos sérios, reconhecidos na comunidade de físicos, e os interpreta de maneira equivocada.
Na página seguinte, 117, o autor coloca uma série de termos e expressões que não têm nenhum sentido na física, como por exemplo “existência de uma ordem oculta, implícita, no universo, que seria a realidade primária”, “processos quântico-informais inteligentes”, “potencial quântico com atividade de significação”, “universo inteligente (informacional) funcionando como uma mente”. Esses termos, de fato, provêm de uma interpretação errada da física, que aparece em alguns livros escritos por David Bohm. Bohm deu contribuições importantes para a física, mas, mais tarde em sua carreira, em contato com o filósofo místico indiano Krishnamurti, Bohm tentou dar uma nova interpretação – errada – para a mecânica quântica, relacionando a consciência com efeitos quânticos [4]. O autor finalmente termina a seção expondo uma conclusão que não faz nenhum sentido, e está desconectada do restante da seção.
É importante destacar que, em ciência, a opinião de um especialista isolado nunca fala mais alto do que os resultados de experimentos bem conduzidos e do consenso dos demais especialistas. O reconhecimento devido a um grande cientista, por suas contribuições passadas, não se estende, automaticamente, às novas hipóteses que possa vir a formular, e muito menos a hipóteses suas que contrariem o que é demonstrado por experimentos.
Na página 119, o autor tenta mostrar algum desenvolvimento matemático da sua ideia da homeostase quântica informacional. A conta se baseia em assumir, erroneamente, que energia é informação e massa é informação, e a partir daí desenvolver um raciocínio pueril. Premissas erradas só podem, obviamente, resultar em absurdos como os que aparecem na página seguinte. Por exemplo, afirmar que a constante de Planck varia de 0 a 1. Fora a contradição ao próprio vocábulo “constante”, a constante de Planck tem um valor muito bem estabelecido com uma incerteza de uma parte em 10 milhões.
A constante de Planck (h) era medida em uma variedade de experimentos e o resultado, dentro de uma precisão imensa, não variava. A partir de 20 /05/2019 a constante de Planck é definida sem incerteza, em acordo com o Bureau Internacional de Pesos e Medidas, com o valor exato de h = 6,62607015×10-34 Joule.segundo [5,6]. Isso contradiz frontalmente a afirmação do autor de que sistemas diferentes teriam “graus de quantização” diferentes. Uma revisão bastante completa das várias formas de medir a constante Planck pode ser encontrada em [7]. Dos absurdos expostos, segue-se uma série de fantasias que finalmente culminam na oferta de uma terapia quântica.
Conclusão: Autores de propostas terapêuticas que caem no grande grupo das chamadas “curas quânticas” utilizam-se de conceitos corretos de mecânica quântica, mas colocados, de maneira espúria, fora do contexto adequado. Inexiste a relação entre o que é entendido por Mecânica Quântica, ou Física Quântica, e aquilo que é dito no artigo mencionado. Trata-se de um artigo nulo do ponto de vista da física. Nota-se que o autor desconhece os princípios básicos de Física Moderna (que tem como bases principais a Mecânica Quântica e a Relatividade Restrita), aprendidos nos primeiros anos de um curso de graduação de física. Trata-se de uma apropriação indevida do termo “quântica”.
[1] https://impa.br/noticias/qual-e-o-proposito-da-ciencia/
[2] https://journals.aps.org/prl/abstract/10.1103/PhysRevLett.118.060401
[3] https://www.youtube.com/watch?v=i6WxIblKVZI
[5] https://www.bipm.org/
Trabalho de fundamental importância este que é desenvolvido por todos que mantém esta página e produzem conteúdo para ela. Desmistificar a física e expor usos mau intencionados de termos e conceitos científicos ajuda a trazer uma maior compreensão do que é (ou do que não é) a física e todos os seus ramos.
Parabéns aos envolvidos
Estou cansados destes distorcedores da física quântica que estão cada vez mais se proliferando graças à liberdade de expressão
O trabalho de vocês é essencial na luta contra a pseudociência, parabéns!!!