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Massa do píon neutro

Bom dia Professor,
Estive estudando algumas propriedade relativas a partículas do modelo padrão e, uma propriedade que me chamou bastante atenção é a massa dos Pions Neutros (π0). Antes de qualquer dúvida, consigo compreender que a massa do π+ e π- são iguais (139.57 MeV/c²), uma vez que ambos são compostos por ud_ e du_ respectivamente e são, portanto, um antipartícula do outro. Contudo, não consigo entender como a massa do π0 (composto por uu_ ou dd_) não difere em razão do tipo de quark que o constitui (134.97 MeV/c²), afinal os quarks Up e Down tem massas diferentes. Não entenda errado, sei que a maior parte desta massa se refere a energia entre os dois quarks, mas me parece uma coincidência muito elevada que esta energia tenha módulo que difira exatamente pela massa em repouso destes pares.
Poderia me explicar como o π0 tem massa igual mesmo quando composto por uu_ e dd_?
Poderia também me explicar “por cima” um pouco do procedimento usado para determinar a massa do π0? em especial, na parte de medição estatística. Se possível, aceitaria algumas referencias sobre isso para conseguir compreender melhor o tema.

Outra dúvida que fique se refere as colisões inelásticas em altas energias entre núcleons e elétrons. Encontro até bastante referencias sobre colisões entre próton-elétron, mas nada sobre nêutron-elétron. Acredito que seja pela dificuldade em utilizar o Nêutron antes dele decair. Existem referencias que estudam esta iteração?

Obrigado!

Respondido por: Prof. Magno V. T. Machado - IF-UFRGS

Um conjunto de questões interessantes e relevantes sobre a interação forte. Começarei a responder em ordem inversa:

1) Dados sobre espalhamento elétron-nêutron:

 Sim, você está correto. No sistema de repouso do nêutron livre, a sua vida média é de 879,4 s = 14,6 min. Enquanto próton livres podem ser facilmente disponibilizados em alvos de hidrogênio líquido, o alvo mais simples envolvendo nêutrons é o deutério (isótopo do H, cujo núcleo é o estado ligado próton-nêutron). Usualmente, a extração experimental (indireta) da seção de choque inelástica elétron-nêutron é obtida através das medidas das seções de choque inelásticas elétron-próton e elétron-dêuteron e a técnica requer correções para os efeitos de ligação dos núcleons no dêuteron.  Estas correções são dependentes de modelo e têm incertezas significativas, principalmente em algumas regiões cinemáticas (grande x de Bjorken). Mais recentemente, há técnicas experimentais que reduzem estas incertezas de maneira significativa. A primeira publicação de uma extração da função de estrutura do nêutron (proporcional à seção de choque inelástica) “quase” independente de modelo foi feita pela colaboração CLAS no Jefferson Lab/EUA. A referência é a seguinte:

* S. Tkachenko et al. [CLAS Collaboration], Measurement of the structure function of the nearly free neutron using spectator tagging in inelastic $^2$H(e, e’p)X scattering with CLAS,Phys. Rev. C89, 045206 (2014),  doi:10.1103/PhysRevC.89.045206.

2) Como é medida experimentalmente a massa do píon neutro?

Há diversas técnicas experimentais, que utilizam tanto o produto de seus decaimentos como os processos de espalhamento onde píons são envolvidos. Píons neutros têm uma vida média muito curta, cerca de 85 attosegundos (8,5×10^-17 s). Seu principal canal de decaimento é em 2 fótons (98.8%), seguido do canal de decaimento em par pósitron-elétron+fóton (1%). No caso do decaimento num par de fótons, a massa do píon pode ser determinada a partir da distribuição de massa invariante deste par. A massa invariante é determinada pela medida das energias destes fótons e o ângulo entre eles. No caso do decaimento em 3-corpos (e^+e^-+fóton), a análise é um pouco mais complexa e o espaço de fase para o decaimento tem de ser investigado (a representação visual das configurações do espaço de fase são denominados de “gráficos de Dalitz”). Estes gráficos representam a frequência relativa das várias maneiras cinematicamente distintas nas quais os produtos do decaimento em 3-corpos podem se apresentar.

A diferença de massa entre píon carregado e neutro pode ser obtido com boa precisão. Píons com carga negativa são frenados em alvos de hidrogênio líquido para formares átomos de hidrogênio piônico (estado ligado píon-próton). Parte deles (60%) sofrem reações de troca de carga (CEX). Nestes tipos de reações, um próton num alvo é trocado por um nêutron do projétil, ou vice-versa, transferindo carga entre alvo e projétil. No caso dos átomos piônicos, a reação tipo-CEX é pi^- + p –> pi^0 + n. A diferença de massa, D = (m_{pi^-} – m_{pi^0}), é determinada a partir das distribuições de tempo-de-voo (TOF) dos nêutrons nesta reação. Combinando medidas de precisão para a diferença de massa D e da massa dos píons carregados, uma determinação acurada da massa do píon neutro pode ser feita. O estudo mais recente nesta linha foi reportado na seguinte referência:

* M. Daum and P.R. Kettle, The $\pi^0$ mass and the first experimental verification of Coulomb de-excitation in pionic hydrogen, SciPost Phys. Proc. 5, 012 (2021), doi:10.21468/SciPostPhysProc.5.012

OBS: A medida mais precisa do tempo de vida do píon neutro foi publicada em:

* I. Larin et al. [PrimEx-II Collaboration], Precision measurement of the neutral pion lifetime, Science 368, 506 (2020), DOI: 10.1126/science.aay6641

3) Diferença de massa entre píons carregados e neutros:

Como os píons são estados ligados de quarks e anti-quark as suas massas podem ser compreendidas a partir da massa de constituintes dos quarks up e down e da energia de ligação entre eles. O potencial para estados ligados neutros e carregados é distinto pois a sua interação eletromagnética, por exemplo, é diferente. Na verdade, os potenciais de interação dependem dos graus de liberdade destes quarks (cor, sabor, carga elétrica, spin). Por exemplo, a energia de ligação deve considerar a orientação dos spins do quarks ligados no méson (interação spin-spin na interação magnética de cor). Do ponto de vista teórico, a descrição do espectro de mésons leves pode utilizar abordagens que fazem uso de modelos fenomenológicos para os potenciais efetivos de interação entre os quarks (há vários deles, com maior ou menor sofisticação, na literatura) ou métodos de primeiros princípios como a Cromodinâmica Quântica (QCD) na rede (Lattice QCD). Este último caso requer grande tempo computacional e algoritmos sofisticados. Um resumo breve destas abordagens pode ser encontrado na referência:

* P.A. Zyla et al. (Particle Data Group), The Review of Particle Physics, Prog. Theor. Exp. Phys. 2020, 083C01 (2020). Veja seção 15 – Quark Model: https://pdg.lbl.gov/2021/reviews/rpp2021-rev-quark-model.pdf

Para dar um exemplo do uso de métodos de primeiros princípios da QCD na rede, a diferença de massa D utilizando esta abordagem foi reportada na referência:

* X. Feng, L. Jin and M.J. Riberdy, Lattice QCD Calculation of the Pion Mass Splitting, Phys. Rev. Lett. 128, no.5, 052003 (2022), doi:10.1103/PhysRevLett.128.052003

A descrição da espectroscopia dos hádrons é um tema relativamente complexo. Entretanto, podemos entender qualitativamente a diferença de massa entre os píons carregados e neutros, por exemplo, levando em conta as suas distintas interações eletromagnéticas. A massa de corrente dos quarks up e down são m_u = 2,16 MeV e m_d = 4,67 (ver Particle Data Group, citado a pouco). A contribuição da massa dos quarks ao pion de carga positiva/negativa é (m_u + m_d) = 6,83 MeV. As suas contribuições para a massa do píon neutro é de [(2xm_u)+(2xm_d)]/2=[(2×2,16) + (2×4,67)]/2 = 6,83 MeV. Claro que esta massa não está nem perto da massa dos píons, apenas dá a ordem de grandeza da contribuição da massa de quark de corrente. Precisamos cálculos de primeiros princípios na QCD na rede para introduzir a contribuição de glúons e quarks virtuais. Entretanto, esta informação já é suficiente para entendermos a diferença de massa. Ou seja, a contribuição das massas dos quarks up e down é a mesma para píons carregados e neutros. Podemos entender qualitativamente a diferença devido aos efeitos eletromagnéticos. No caso dos carregados, espera-se que eles tenham auto-repulsão pois há uma carga elétrica +e ou -e distribuída espacialmente no volume ocupado pelo píon (podemos simplificar e assumir um volume esférico, cujo raio é dado pelos raios de carga médios deles). Para uma estimativa grosseira, podemos usar a energia eletrostática de uma esfera uniformemente carregada de carga Q e raio R é dada por U = (3/5)*(k*Q^2/R), onde k é a constante de Coulomb. Usando k*e^2 = 1,44 MeV*fm e o raio de carga do píon como sendo de R = 0,657 fm obtemos U = (3/5)*(1,43/0,659) = 1,315 MeV, a qual é da ordem de grandeza da diferença de massa dos píons, D = 4,593 MeV. Um raciocínio similar pode ser usado para entender a diferença de massa do próton e nêutron (além da diferença de configurações de quarks u e d em cada núcleon).

 


Um comentário em “Massa do píon neutro

  1. Magno Valerio Trindade Machado disse:

    Complementando a última resposta, recentemente foi realizada a primeira decomposição completa do momento do píons nas contribuições advindas dos quarks e glúons utilizando métodos de primeiros princípios da QCD na rede (Lattice QCD). Agradecemos a pesquisadora Fernanda Steffens (Helmholtz-Institut für Strahlen- und Kernphysik e Bethe Center for Theoretical Physics, Universidade de Bonn, Alemanha ), que faz parte da colaboração Extended Twisted Mass, por chamar atenção para este trabalho. Infere-se do resultado da pesquisa que a contribuição dos glúons para massa do píon é de 55 MeV avaliada numa escala de 2 GeV. Ou seja, praticamente a metade da massa do píon está associada aos glúons e ainda há uma contribuição residual de quarks estranho e charm. O referido estudo foi publicado na referência:

    ** C. Alexandrou et al. [Extended Twisted Mass], Quark and Gluon Momentum Fractions in the Pion from Nf=2+1+1 Lattice QCD, Phys. Rev. Lett. 127, no.25, 252001 (2021), doi:10.1103/PhysRevLett.127.252001

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