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Relatividade: fio com corrente em sistemas de referência diferentes

Estou com uma dúvida equivalente aquela que originou Equivalência dos campos magnéticos e elétricos na relatividade. Assisti um vídeo que explica, segundo a relatividade restrita, a existência de força magnética em uma carga andando paralela à um fio percorrido por corrente.

Explicação do vídeo: Suponha um fio horizontal, no qual os elétrons deslocam-se para a direita. Paralela ao fio, uma carga positiva é deslocada para a direita, com a mesma velocidade dos elétrons, para motivo de simplicidade. A carga externa, portanto, vê os elétrons do fio parados e os prótons deslocando-se para a esquerda. Estes prótons serão vistos contraídos (Lorentz). Assim, a carga externa “vê” o fio positivamente carregado e será repelida do fio. Se descrevêssemos o campo magnético gerado pela corrente elétrica no fio, chegaríamos a mesma conclusão: A carga externa em movimento seria repelida do fio.

Até aqui, tudo vem.

Porém, tentei transpor este argumento para a seguinte situação: A carga externa está parada, vendo os elétrons no fio se movimentarem para a direita. Essas cargas sofrerão a contração de Lorentz. e portanto, eu teria uma densidade de elétrons superior à densidade de prótons. Assim, a carga externa, positiva, seria atraída pelo fio percorrido percorrido por corrente.

Mas, sabemos que isso não ocorre. Uma carga parada nas vizinhanças de um fio percorrido por corrente não sofre ação de forças.

Qual foi o meu erro ao transpor o argumento da primeira situação (carga andando) para a segunda situação (carga parada) ?

Respondido por: Prof. Luiz Fernando Ziebell - IF-UFRGS

Um dos postulados da Relatividade Restrita diz que as leis da Física são as mesmas em todos os referenciais inerciais. A questão é então como fenômenos vistos em um dado referencial são descritos em outro que está em movimento relativo em relação ao primeiro, usando as mesmas leis.

Vamos então supor um referencial em que há um longo fio condutor, retilíneo, ligado a um circuito em que há uma fonte de força eletromotriz e uma chave. Vamos supor que a chave está aberta, de modo que não há corrente no circuito.

Para um observador nesse referencial o fio é neutro e não há corrente. Ele não observa nem campo elétrico nem campo magnético produzidos pelo fio. Se houver uma partícula carregada fora do fio em repouso nesse referencial, ela não sofrerá nem força elétrica nem força magnética.

Agora suponhamos que essa partícula (que podemos supor positiva, como referência) esteja movendo-se paralelamente ao fio, com velocidade constante. Como já foi visto, no referencial onde o fio está em repouso não há campos produzidos pelo fio. O observador nesse referencial simplesmente vê uma carga em movimento, sobre a qual não são exercidas forças. Do ponto de vista de um referencial que se mova paralelamente ao fio, acompanhando a partícula, também não há densidade de carga nem densidade de corrente associadas ao fio, e não é observada nenhuma força aplicada sobre a carga.

Agora suponhamos que o observador no referencial do fio feche a chave, estabelecendo então uma corrente no circuito. Esse observador, no seu sistema de referência, ainda vê o fio em repouso, mas vê os elétrons do fio com uma velocidade média de deriva ao longo do fio. É importante salientar que a carga de um elétron não é “contraída” pelo fato de estar em movimento. A carga é uma quantidade invariante, é a mesma em todos os referenciais. O que pode aparecer contraído é um comprimento, quando visto em movimento relativo, o que afeta a observação das densidades de carga e de corrente. Mas, no caso, não houve mudança de referencial. O observador continua no mesmo referencial do fio, simplesmente vê os elétrons em movimento. O fio continua neutro para esse observador, mas para ele há uma corrente elétrica no fio, que estabelece em torno do fio um campo magnético, cujas linhas circulam em torno do fio. Portanto, esse observador diz que a carga positiva que se desloca paralelamente ao fio deve sofrer uma força magnética, força essa que ele pode observar e medir. Essa força pode ser no sentido de afastar a carga do fio ou de atrair a carga para o fio, dependendo dos sentidos relativos da corrente e do movimento da carga.

Agora mudemos para o referencial que acompanha a partícula carregada em seu movimento paralelo ao fio. Para um observador nesse referencial a partícula está em repouso, portanto não pode sofrer força magnética (lembremos que em todos os referenciais valem as mesmas leis da Física). Quando a corrente é ligada no fio (que ele vê em movimento), esse observador verá uma densidade de corrente (diferente da que era vista no sistema que via o fio em repouso, devido à transformação de Lorentz), e verá também uma densidade de carga (lembremos que não são só as coordenadas de tempo e espaço que são afetadas pelas transformações de Lorentz, mas também outras quantidades, como as densidades de carga e de corrente). Esse observador verá um campo magnético em torno do fio, mas dirá que não há força magnética sobre a partícula, pois ela está em repouso. Entretanto, como para ele existe uma densidade de carga resultante no fio, ele observa no entorno do fio um campo elétrico, que exerce força sobre a partícula. Assim como o observador em repouso em relação ao fio, o observador em repouso em relação à partícula também percebe uma força exercida sobre a partícula, no sentido de afastá-la do fio ou de atraí-la para o fio. Os dois observadores interpretam de forma diferente a existência dessa força, mas a explicam usando as mesmas leis da Física, conforme é da essência da teoria da Relatividade.

Cabe aqui uma ressalva: A resposta à questão adotou uma postura relativamente simplista, buscando salientar os aspectos relativísticos da questão. A questão do campo no entorno de condutores conduzindo correntes envolve aspectos referentes a distribuições de cargas e correntes que não são uniformes, aspectos esses que normalmente nem mesmo são mencionados nas discussões sobre circuitos elétricos. Adotando o mesmo ponto de vista, simplificamos a análise e ignoramos esses efeitos, concentrando o foco nos aspectos relativísticos. Para mais informação sobre essas questões podem ser mencionadas discussões anteriores que constam do acervo do “Pergunte ao CREF”, como

A razão do “esquecimento” do campo externo aos condutores com corrente elétrica

Campo elétrico externamente a condutores conduzindo corrente.

OBSERVAÇÃO: a pergunta foi motivada pela postagem Equivalência dos campos magnéticos e elétricos na relatividade.


2 comentários em “Relatividade: fio com corrente em sistemas de referência diferentes

  1. Francisco disse:

    Na questão diz “uma carga positiva é deslocada para a direita”. “os prótons deslocando-se para a esquerda” até onde aprendi prótons não circula no fio, somente os elétrons tem tal capacidade de circular em um material condutor aplicando se uma ddp para que seu sentido seja ordenado. Me corrija se eu estiver errado

    • Fernando Lang disse:

      A referência não é a um próton do fio mas a uma partícula carregada positivamente fora do fio. Adicionalmente em condutores não metálicos podem ser encontradas cargas livres positivas, por exemplo, em soluções iônicas.

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