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Fontes do campo magnético da Terra e a estrutura interna de nosso planeta

Professor Lang

O terraplanista Milto Tapado (gosto muito da expressão terrachato 🙂 ) afirmou que os “globaloides” (assim eles designam as pessoas que conhecem a forma real da Terra) creem que materiais ferromagnéticos no núcleo da Terra produziriam seu campo magnético e até citou a Wikipedia. Depois o terrachato disse ser isso impossível pois quando se aquece um ímã ele perde seu campo e que a temperatura do núcleo da Terra é muito elevada, tanto que lá há metais em estado líquido.

O senhor poderia me dar uma ideia sobre a origem do magnetismo terrestre e também esclarecer como se conhece a parte de dentro de nosso planeta já que ninguém foi lá dentro. Grato.

Respondido por: Prof. Fernando Lang da Silveira - www.if.ufrgs.br/~lang/

Eu vou começar pelo conhecimento da estrutura do nosso planeta. A propósito já ouvi e li terra-chatos argumentando que tal conhecimento é impossível pois até hoje não conseguimos atingir profundidades superiores a dezenas de quilômetro no planeta.  Como se precisássemos necessariamente abrir a cabeça ou a barriga de um sujeito para investigar o que tem lá dentro.

O conhecimento sobre a estrutura interna da Terra sofreu um grande avanço a partir do século XX quando geólogos, geofísicos e físicos passaram a investigar teórica e experimentalmente a propagação de ondas sísmicas  geradas em terremotos. Tais ondas, ao se propagarem sofrem os conhecidos efeitos de reflexão e refração, sendo detectadas em variados pontos da superfície do planeta próximos e distantes, inclusive em pontos do outro lado do mundo.

A figura 1 ilustra de maneira esquemática os trajetos dos diversos tipos de ondas sísmicas  – primárias (P), secundárias (S),  … – geradas no foco de um terremoto, bem como a estrutura da Terra que é composta pela crosta, pelo manto superior, manto inferior e pelos núcleos externo e interno do planeta. Conforme indica a figura os trajetos não são retilíneos graças à refração e reflexão.

Infere-se que o núcleo externo seja líquido porque não transmite ondas de cisalhamento (S) e porque a velocidade das ondas de compressão (P) que passam por ele é drasticamente reduzida. O núcleo interno é considerado sólido devido ao comportamento das ondas P e S que passam por ele.

A seção transversal de toda a Terra (figura 1), mostrando a complexidade dos caminhos das ondas do terremoto. Os caminhos se curvam porque os diferentes tipos de rocha encontrados em diferentes profundidades alteram a velocidade com que as ondas viajam. As linhas contínuas marcadas com P são ondas de compressão; linhas tracejadas marcadas com S são ondas de cisalhamento. As ondas S não viajam através do núcleo, mas podem ser convertidas em ondas de compressão (marcadas com K) ao entrar no núcleo (PKP, SKS). As ondas podem ser refletidas na superfície (PP, PPP, SS).

Então, respondendo de maneira sucinta, foi através de ondas sísmicas que os cientistas conseguiram “radiografias” do planeta que revelaram detalhes importantes de sua estrutura interna. Aqui vão duas referências que detalham melhor como efetivamente o estudo das ondas sísmicas permitiram este importante conhecimento sobre a Terra: ONDAS SÍSMICAS E O INTERIOR DA TERRA, FUNDAMENTOS DE GEOFÍSICA-SISMOLOGIA. Um importante estudo de revisão sobre o manto da Terra vide The Earth’s mantle.

Os terraplanistas, ou por ignorância, ou por desonestidade intelectual, criam espantalhos e os atacam. O espantalho desta vez é a afirmação de que “os globaloides acreditam na existência de um ímã dentro do núcleo da Terra gerando o campo magnético”. Explicando melhor, imputam aos cientistas a ideia estapafúrdia de que o campo magnético da Terra seria criado por material ferromagnético em estado magnetizado dentro do núcleo quente interno e sólido do planeta. Depois dizem, agora corretamente, que tal é impossível dadas as altas temperaturas do núcleo. E então concluem que os cientistas estão errados e portanto a Terra é plana!

É bem sabido que a magnetização espontânea e permanente dos materiais ferromagnéticos somente é possível abaixo do ponto ou temperatura Curie. Tal temperatura é cerca de 1000 K para o ferro por exemplo. Daí que se um ímã permanente é aquecido suficientemente ele deixa de ser um imã, isto é, deixa de produzir campo magnético, deixa de ter respostas fortes em presença de campo magnético. Como a temperatura do núcleo da Terra é cerca de 6000 K, de fato lá é impossível um ímã permanente.

Desde as primeiras décadas do século XIX, graças aos trabalhos de Oersted, Ampère, …., é bem sabido que correntes elétricas (cargas elétricas em movimento) geram campo magnético. Possivelmente foi Ampère por volta de 1820 que cogitou genialmente que o magnetismo terrestre teria como causa correntes elétricas dentro da Terra conforme encontra-se em AMPÈRE E A ORIGEM DO MAGNETISMO TERRESTRE.

O campo magnético terrestre tem a sua mais importante contribuição (ele depende também de fatores externos à Terra como o vento solar) no chamado mecanismo de dínamo. Conforme está representado de maneira esquemática na figura 2, são correntes elétricas no núcleo externo e liquido do planeta, as responsáveis pelo campo magnético terrestre.

Para mais detalhes sobre o “dínamo terrestre” vide Earth dynamo.

Vide também RECENT GEODYNAMO SIMULATIONS AND OBSERVATIONS OF THE GEOMAGNETIC FIELD

Outras postages do CREF tratando do magnetismo terrestre:

Afinal para onde a bússola aponta!

Magnetismo terrestre: novamente a Terra Plana é refutada por um terra-chato!

“Docendo discimus.” (Sêneca)

 


6 comentários em “Fontes do campo magnético da Terra e a estrutura interna de nosso planeta

  1. Marcos Pradella disse:

    Excelente explicação, professor Lang, sempre trazendo assuntos muito pertinentes à discussão!

    Eu tenho uma pequena sugestão: trocar radiografia por ecografia (ou ultrassonografia).
    Os fenômenos físicos envolvidos na ultrassonografia sãos em síntese, reflexão de ondas mecânicas que ocorrem em função de mudança de densidade entre os diferentes tecidos do corpo, além de variação da velocidade de propagação da onda, que, por sua vez, está relacionada com a resistência à compressão, dependente da densidade e da rigidez dos tecidos e órgãos.
    Nos ecógrafo, trens de ondas são emitidos e absorvidos, após sua reflexão por um cristal piezoelétrico presente na sonda. As diferenças de tempo entre as ondas emitidas e recebidas passam por processamento digital e, a partir disso, há a construção de uma imagem da estrutura interna do corpo, que pode ser humano ou de outros objetos, uma vez que a técnica também é utilizada em muitas aplicações industriais. Também a partir de diferentes posições da sonda é possível inferir a estrutura interna em 3-D, e isto permite, por exemplo, a obtenção da imagem de um bebê sendo gestado.
    Para o estudo da estrutura interna da Terra, a emissão da onda se dá a partir de um abalo sísmico e a detecção ocorre em sismógrafos, sendo que o processo para formação de imagens é o mesmo do exame de ultrassonografia.
    Já os raios-X são ondas eletromagnéticas que atravessam o corpo, se propagando em linha reta e a imagem depende da atnuanação deste feixe de fótons, que ocorrem de forma distinta para os diferentes órgãos e tecidos.
    Portanto, eu considero que a ultrassonografia é uma analogia mais adequada para a técnica utilizada no imageamento do nosso planeta.

  2. Allan disse:

    Dias atrás eu li sobre materiais termoelétricos. Quando dois metais diferentes (ex: níquel e ferro) possuem diferença de temperatura entre eles e estão conectados entre si, produzem corrente elétrica. Sabidamente que o núcleo da Terra é composto por Ferro e Níquel e estão em processos de convecção, que há diferenças de temperatura.. Acredito que provavelmente as correntes elétricas são produzidas por essa propriedade do metais (termoeletricidade).

    • Fernando Lang disse:

      A termoeletricidade (efeito Peltier) é um efeito na junção de dois metais no estado sólido. No caso do núcleo da Terra os metais estão no estado liquido e seus átomos ionizados. As correntes de convecção transportam portanto cargas elétricas, ou seja, as correntes de convecção também são correntes elétricas e estar produzem campo magnético.

  3. Gabriel disse:

    Bom dia, professor Lang, tudo bom?

    No link indicado, “Earth Dynamo” diz que:

    “A conductive fluid moving through a magnetic field will feel induced currents due to the changing flux.”

    Irei traduzir, pois estamos no Brasil e falamos português, certo?

    “Um fluido condutor movendo-se através de um campo magnético
    sentirá correntes induzidas devido ao fluxo variável.”

    Então, voltamos a pergunta, qual a fonte do campo magnético?

  4. Hermes Dagoberto disse:

    Gostei do tema de sua divulgação, gostaria de ver se é pertinente para meu site.

    Sds.

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