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Descarga elétrica através do ar NÃO é consequente do arrancamento de elétrons dos eletrodos!

Professor: No seu vídeo – Demonstrações de Eletrostática – o senhor disse que as descargas elétricas através do ar não são consequentes do arrancamento de elétrons dos condutores metálicos entre os quais acontecem. Gostaria de saber mais sobre isto pois já encontrei explicações que afirmam que o elétrons são arrancados dos metais e por isto ocorre a descarga. Agradeço sua resposta.

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Respondido por: Prof. Fernando Lang da Silveira - www.if.ufrgs.br/~lang/

Em livros e em locais da internet é usual se encontrar a ideia ERRADA de que a descarga elétrica entre dois eletrodos no ar dependa do arrancamento de elétrons dos eletrodos. O verbete em português, mas não em inglês, da Wikipédia sobre a descarga de corona veiculava em 2016 explicitamente tal ideia equivocada (agora em 2023 o erro está corrigido).

A descarga elétrica através do ar pode acontecer como descarga de corona ou como arco elétrico.

Vou me deter especialmente na descarga de corona, tomando como referência a seguinte bibliografia: Bartnikas, R. e McMahon, E. J. Engineering Dielectrics – Volume I – Corona measurement and Interpretation. Baltimore: ASTM, 1979.

A descarga de corona ocorre quando há um campo elétrico suficientemente intenso para promover a ionização do ar – intensidade da ordem de 106 V/m no ar a 1 atm. A rigidez dielétrica do ar a 1 atm é 3×106 V/m.

Na página 6 do texto acima referido há  a discussão sobre a ionização de um gás submetido a um intenso campo elétrico, dizendo que se o campo é suficientemente grande consegue arrancar elétrons das moléculas do gás. Em todo o livro não há nenhuma referência ao arrancamento de elétrons diretamente dos eletrodos pelo campo.

Depois destaca que o mecanismo principal para ionização do gás é a ionização por colisão inelástica de elétrons com as moléculas, provocando avalanches ou cascatas de elétrons em sucessivas colisões com as moléculas do gás. Entretanto chama a atenção que o mecanismo de arrancamento de elétrons das moléculas diretamente pelo campo  é de segunda importância para a produção dos elétrons iniciais nas cascatas de elétrons do efeito corona. Escreve textualmente: Note that the initial free electron, which initiates the ionization process, is omnipresent and can be due to cosmic radiation or a radioactive background. Ou seja, existem sempre elétrons livres no gás, decorrentes da radiação cósmica ou da radioatividade de fundo, que sendo acelerados pelo campo elétrico servem de sementes para as cascatas ou avalanches que ionizam fortemente o gás.

Tudo isso vai ao encontro do que está no livro do Saveliev, I. V. (Curso de Física General 2. Moscou: MIR, 1984.) de onde originalmente vi uma referência à emissão fria de elétrons e a aquele valor de 108 V/m ou 109 V/m para arrancamento dos elétrons em metais. OBSERVAÇÃO: o volume 1 do livro do Saveliev está disponível em Volume1.

O livro do Savéliev, ótimo texto de Física Geral russo, também discute os mecanismos de ionização dos gases e se refere à possibilidade de emissão de elétrons secundários no cátodo pelo bombardeamento do cátodo por íons positivos oriundos no gás ionizado. A capa luminosa catódica que se observa em tubos de descarga (por exemplo nos pequenos tubos de neon de chaves de teste) é consequente da recombinação ou captura desses elétrons secundários, originados no bombardeamento do cátodo,  pelos próprios íons. Na postagem  É possível determinarmos o sinal da carga elétrica de um corpo sem que saibamos o sinal da carga de outro corpo? discute-se a utilização da luminiscência catódica na detecção do sinal da carga de um corpo eletrizado.

A ocorrência do campo elétrico suficientemente intenso (cerca de 10^6 V/m a 1 atm) para desencadear a forte ionização do ar acontece mais facilmente nas proximidades de eletrodos com pequeno raio de curvatura graças ao bem conhecido poder das pontas. No vídeo Demonstrações de Eletrostática  apresento experimentalmente o poder das pontas a partir dos 36 min. Assim sendo a descarga de corona é perceptível nas imediações de eletrodos submetidos à alta tensão e eventualmente, se a alta tensão for mantida, poderá se transformar em um arco elétrico conforme pode ser visto em Por que a descarga elétrica sobe?

Finalizando, é falso explicar as descargas elétricas através do ar pelo arrancamento de elétrons dos eletrodos pela singela razão de que com campos elétricos muito menos intensos do que aqueles responsáveis pela emissão fria de elétrons, o ar se ioniza e a descarga ocorre.

Vide também Bobina de Tesla funciona no vácuo?

“Docendo discimus.” (Sêneca)

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Rodrigo Motta – Sobre a postagem do CREF referente a descarga elétrica através do ar. Achei disponível o livro do Savelyev. Li rápido (páginas 245 a 255). Os russos realmente tinham uns livros bem interessantes. Segue o link, caso queira disponibilizar para o pessoal: https://ia600402.us.archive.org/18/items/SavelyevPhysicsGeneralCourseVol2/I-V-Savelyev-Physics-General-Course-Vol-2.pdf

Fernando Lang da Silveira – Muito melhores do que a maioria dos livros universitários atuais! Aí está o volume 1 também.   https://ia801508.us.archive.org/2/items/SavelyevPhysicsGeneralCourseVol1/I-V-Savelyev-Physics-General-Course-Vol-1.pdf

 

Visualizações entre 27 de maio de 2013 e novembro de 2017: 3501.


7 comentários em “Descarga elétrica através do ar NÃO é consequente do arrancamento de elétrons dos eletrodos!

  1. Amaro disse:

    Boa noite, gostaria de saber se o efeito corona está necessariamente relacionado as descargas atmosféricas envolvendo o solo, e/ou se posso considerar descargas atmosféricas como um tipo de arco elétrico. Geralmente as referencias que encontro são bem subjetivas quanto ao assunto.

  2. Antonio Maria Laplaud Dobignies disse:

    Bem clara a explanação do professor

  3. David Cemin disse:

    Ler isso me faz ter saudades das aulas contigo professor. Muito da base de pensamento crítico da minha formação foi criada durante as aulas de física 2 e física 3 na UFRGS que tive contigo. Obrigado por difundir conhecimento através dessa página.

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