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Um equívoco recorrente: A tangente do ângulo de inclinação da reta no gráfico x versus t no MRU é a velocidade

Eu sempre aprendi que no gráfico da velocidade versus tempo para o MRUV a tangente do ângulo de inclinação da reta informa o valor da aceleração.

Hoje em aula a professora disse que não é! Ela disse que NÃO TEM SENTIDO falar em ângulo inclusive.

Na internet é fácil encontrar materiais onde se afirma o que sempre aprendi, isto para não falar dos livros de física para o ensino médio. Será que a minha professora está certa e eu aprendi errado?

Respondido por: Prof. Fernando Lang da Silveira - www.if.ufrgs.br/~lang/

Eu estava preparando esta resposta em 06/04/2014 quando, coincidentemente, fui interpelado no Facebook  por um aluno que me escreveu:

Fernando: essa história da tangente do angulo ser numericamente igual a tal coisa, como por exemplo no gráfico espaço por tempo a tangente  me dá a velocidade.

Mas se o ângulo for por exemplo de 45°?

O  gráfico não me dá valores, não temos a escala mas diz que espaço em metros e tempo em segundos pq não posso falar que a velocidade vale 1m/s?

Eu sei q ta errado só não entendo pq o livro fala q é pq eu não tenho escala no gráfico mas mesmo assim não consigo entender queria um jeito mas didático e mais objetivo.

Se a velocidade não vai dar igual à unidade pq se diz que ela sempre será igual  a tangente do ângulo pois se o ângulo é de 45º  teria  q ser 1!

Este aluno que me interpelou no FB demonstra ter percebido algo muito inquietante nesta afirmação recorrente de que a tangente do ângulo de inclinação em um gráfico em que os eixos cartesianos representam variáveis com dimensão (com unidades de medida) diversas  é numericamente igual a tal coisa, por exemplo, no gráfico da posição contra o tempo, é  numericamente igual à velocidade.

Vejamos um exemplo. O gráfico abaixo, que representa a posição x em metros em função do tempo t em segundos para uma partícula em movimento retilíneo, permite facilmente se determinar o valor da velocidade da partícula. Este valor é dado pela DECLIVIDADE da reta no gráfico e a declividade da reta pode ser calculada como (14 – 4) metros divididos por (5 – 0) segundos, isto é, 10 metros divididos por 5 s, portanto, 2,0 m/s.

graf1

É importante notar que até aqui não há qualquer referência a ângulo mas sim à DECLIVIDADE DE UMA RETA.

Outra representação possível para o mesmo movimento se encontra no gráfico abaixo. Esta representação leva a uma reta da posição contra o tempo mais inclinada em relação ao eixo das ordenadas do que a representação anterior. Entretanto, apesar de as duas representações serem diversas no espaço REAL do plano da tela do computador (ou no plano da página do papel onde se pode imprimir estas figuras, ou no plano de um quadro negro, …), elas contém exatamente a mesma informação e a declividade da reta representada nesse gráfico também é dada por como (14 – 4) metros divididos por (5 – 0) segundos, isto é, 10 metros divididos por 5 s, portanto, 2,0 m/s.

graf3

Os gráficos que fazemos em Física (e em ciências em geral) se constituem em REPRESENTAÇÕES no espaço REAL BIDIMENSIONAL (do plano do quadro negro, da folha de papel, da tela do computador, …) de variáveis que nada têm a ver com o espaço real, mesmo quando eventualmente a dimensão de uma variável é a do espaço real (por exemplo, a posição em metros nos gráficos anteriores).

O conceito de ângulo, historicamente associado ao ESPAÇO REAL inspirador da Geometria Plana, é a razão entre o comprimento de um arco de circunferência no ESPAÇO REAL e o raio desta mesma circunferência. Desta forma ângulo é uma grandeza adimensional, assim como a tangente do ângulo (ou qualquer outra função trigonométrica) NÃO POSSUI DIMENSÃO. O conceito de ângulo da Geometria Plana é generalizável para ESPAÇOS ABSTRATOS desde que as diversas dimensões desses espaços sejam HOMOGÊNEAS, isto é, tenham as mesmas unidades de medida. Entretanto nos gráficos anteriores, notoriamente as duas dimensões representam variáveis físicas diversas.

A DECLIVIDADE da reta (slope em inglês)  ou de uma curva em um ponto (dada pela declividade da reta tangente à curva no ponto considerado) é bem definida em qualquer desses espaços abstratos e resulta ser a mesma nos dois gráficos anteriores. 

Ou seja, a DECLIVIDADE da reta, que na representação analítica y = B.x + A  é identificada pelo parâmetro B  que multiplica a variável independente x, SOMENTE pode ser interpretada como a tangente de um ângulo se as variáveis y e x tiverem a mesma unidade de medida. No gráfico de y contra x de fato o ângulo entre a reta e o eixo dos x será idêntico ao arco tangente da DECLIVIDADE se x e y, além de terem as mesmas unidades de medida, estiverem sendo representados na mesma escala.

Além de NÃO precisarmos do conceito de ângulo para entender um gráfico cartesiano que representa a relação entre duas grandezas físicas diferentes, a tentativa EQUIVOCADA de se valer de tal conceito gera legítimas dificuldades de compreensão muito bem expressas no que o aluno escreveu e eu reproduzi no início desta resposta. Vide mais abaixo, em letra preta, um caso exemplar de aplicação do conceito equivocado sobre a declividade.

Portanto a tua professora está CORRETA e todos os textos que referem a tangente do ângulo como expressando a velocidade (ou a aceleração ou qualquer outra grandeza física) nos gráficos que representam a relação entre duas variáveis físicas dimensionalmente diferentes estão EQUIVOCADOS.

Algumas outras postagens sobre Cinemática: Cinemática.

“Docendo discimus.” (Sêneca)

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Comentários no Facebook

Prof. Ciclamio Barreto (UFRN)- Acho INCLINAÇÃO a palavra mais apropriada em língua portuguesa. Mas se poderia falar de aclive (ou aclividade, correspondendo a um ângulo agudo com a direção de valores crescentes da variável no eixo horizontal) ou declive (ou declividade, correspondendo a um ângulo obtuso).

Fernando Lang da Silveira – Aclive ou declive em inglês é slope.

Fernando Lang da Silveira Vejam que em português declive tem, entre outros sinônimos, inclinação. http://www.dicio.com.br/declive/

Ciclamio Barreto – Porque SLOPE significa ACLIVE ou DECLIVE, prefiro INCLINAÇÃO.

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Madaaz Mada – Fernando Lang da Silveira, são essas coisas que sempre devemos estar atentos e questionar todas as “verdades” ditas na escola e as escritas em livros. No entanto, mesmo sendo de maneira fraca, o problema apontado pelo aluno não seria resolvido notando-se que a relação entre a tangente e velocidade (em um gráfico posição por tempo) é acompanhado pelo “numericamente igual”? Eu entendo “numericamente igual” como sendo “mantendo-se a mesma escala, o valor da tangente coincide com o valor da declividade quando se desconsidera as dimensões das grandezas físicas em questão”. Que tal?

Fernando Lang da Silveira – Ainda que o fosse, por que referir a tangente de um ângulo se o que interessa DE FATO é a declividade da reta? Alguém já calculou o tal ângulo? Para que serve o ângulo neste caso? E de fato NÃO tem sentido falar em “manter a mesma escala nos dois eixos” pois tal implicaria em poder comensurar distância com tempo, isto é, responder a seguinte pergunta: Quantos segundo cabem em um metro?

Fernando Lang da Silveira – A declividade da reta, mesmo no espaço real onde pode licitamente ser associada a um ângulo, é muito mais INTELIGÍVEL do que ângulo. Se há dúvida sobre a questão de inteligibilidade pede a um construtor de telhados construir um telhado com inclinação de 27 graus! Ele entenderá o que queres para o telhado se lhe disseres: quero um telhado com inclinação de 50% ou de 1 para 2!

Fernando Lang da Silveira –  Na minha opinião, além de ser rigorosamente destituído de significado o conceito de ângulo em tais circunstâncias, não vejo qualquer vantagem pedagógica nesta “viagem da tangente do ângulo de inclinação da reta”!  Observa a legítima dificuldade que tal acarretou para o aluno que referi no início de minha resposta.

Fernando Lang da Silveira – Para minha surpresa no Manual de Projeto Geométrico do DNIT, referido no meu artigo Inclinação de ruas e estradas  NÃO reporta ângulos mas apenas “inclinações percentuais” (tangente do ângulo de inclinação).

Fernando Lang da Silveira – Aproveito para te contar uma história acontecida no laboratório de Física Experimental I.

A atividade constituía em um experimento sobre movimento com a aceleração constante no plano inclinado. A partir das medidas de posição e tempo, deveriam os alunos ajustar uma reta aos pontos experimentais em um gráfico da posição contra o quadrado do tempo e depois, a partir do gráfico, determinar a aceleração.

Lá pelas tantas um aluno disse para professora que lhe faltava um transferidor. No primeiro momento ela achou que ele queria o transferidor para medir algum ângulo no plano inclinado (diga-se de passagem que nem lá necessitamos de fato um transferidor se quisermos saber sobre a inclinação). Ele explicou que necessitava de um transferidor para medir o ângulo que a reta de x contra t ao quadrado fazia e, depois, encontraria  a tangente do ângulo, obtendo finalmente a aceleração.

Como se pode notar este aluno aprendeu bem a lição equivocada que lhe ensinaram, não só no ensino médio, mas também em suas aulas de Física I na universidade.

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2 comentários em “Um equívoco recorrente: A tangente do ângulo de inclinação da reta no gráfico x versus t no MRU é a velocidade

  1. ciclamio barreto disse:

    Na volta às aulas pelos ingressantes na universidade, convém ao professor de física I, ao informar a lista de materiais da disciplina, frisar bem a desnecessidade de um transferidor.

  2. Fernando M. Matias disse:

    Caro Professor Fernando Lang,
    não foram poucas as vezes em que louvei seu trabalho no CREF, do qual sou fã assumido, mas desta vez ousarei discordar.
    A extensão de conceitos é algo normal na Ciência. Se não o fosse, qual sentido haveria em se calcular, por exemplo, o seno de ângulos obtusos ou complexos? Como lhe foi alertado, não é difícil generalizar o conceito de ângulo para espaços não homogêneos. Como analogia mais próxima, a generalização do conceito de distância deu origem a inúmeros avanços na Física, na Matemática e, mais recentemente, na Ciência de Dados. Neste contexto, classificar como “equivocado” o uso do termo “tangente” para a inclinação da “reta tangente” a um gráfico me parece um erro. Talvez o termo mais adequado fosse “questionável”.

    Tal questionamento, se feito, deve sê-lo pelo aspecto pedagógico. E aí há que se levar em conta o momento quando tais conceitos são apresentados. No Ensino Médio, quando o aluno, já tendo tido contato com a ideia de tangente, tem mais facilidade para entender a taxa de variação instantânea (a ser vista como derivada no Ensino Superior). A alternativa, por meio da exibição de um limite que para o aluno de Ensino Médio é algo exotérico, não acrescenta quase nada.

    O fato é que uma abordagem através da generalização grosseira do conceito de tangente tem perigos óbvios (como mostram as histórias de tentativa de uso de transferidores), mas também tem seus méritos. O uso da Geometria Analítica no ensino superior como ferramenta de Ensino para o cálculo de derivadas reflete isso. Mesmo em termos históricos, os conceitos de cálculos de tangentes e de derivadas estão intrinsecamente amarrados.

    Em suma, não vejo essa abordagem como equivocada. O importante nessa abordagem, assim como com qualquer outra, é percebermos claramente quais são as vantagens e perigos associados à mesma. Louvo sua postagem por levantar esta discussão, lembrando a muitos docentes de seus perigos, mas discordo de uma eventual conclusão sobre a mesma não ser recomendada. Conheço apenas duas alternativas para discutir gráficos da Física no Ensino Médio: fazer o aluno decorar as fórmulas, colocando que um dia elas serão deduzidas para aqueles que aprenderem a derivar e integrar; ou utilizar generalizações grosseiras dos conceitos de área e tangente para, pelo menos, dar uma ideia da origem de tais fórmulas. Faço um “meio termo”. Uso essa abordagem geométrica, mas aviso aos alunos que os estou “enganando”, contando apenas parte de uma história a ser vista com mais rigor no Ensino Superior. Chego a escrever o limite no quadro, mas como quem mostra um doce a ser saboreado depois do almoço.

    Estou aberto a novas propostas pedagógicas, que talvez existam e eu desconheça, mas até lá continuarei utilizando essa “tangente”, bem como as “áreas” igualmente “grosseiras”.

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