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Física Quântica (Ondas de probabilidade)

Professor, vi em aula que as ondas de probabilidade do elétron refutam a existência de trajetórias feitas pelo elétron. Porém ele pode ser detectado em posições diferentes da sua “posição inicial”. Mas então, se o elétron não possui trajetória, como ele se desloca?

Respondido por: Prof. Michel E. M. Betz - IF-UFRGS

A possibilidade de atribuir-se, na mecânica quântica, uma trajetória a uma partícula já foi parcialmente abordada na resposta a uma pergunta anterior [1], que focava a possibilidade de determinar-se simultaneamente a posição e a velocidade de uma partícula quântica. Em resposta à presente pergunta, serão abordadas aqui duas questões por ela levantadas.

A primeira questão diz respeito à explicação, em termos da função de onda quântica, das trajetórias de partículas observadas em vários tipos de dispositivos experimentais, tais como emulsão fotográfica, câmara de ionização, etc. Considerando, por exemplo, uma partícula α emitida por um núcleo radioativo e propagando-se subsequentemente num meio cujos átomos ela é capaz de excitar, pode-se indagar sobre a distribuição dos flashes produzidos pela desexcitação dos átomos atingidos. Se, conforme os princípios da mecânica quântica, descrevermos o movimento da partícula por uma onda de probabilidade propagando-se radialmente a partir do núcleo emissor, poderíamos talvez esperar observar uma sucessão de flashes cada vez mais afastados radialmente mas com uma distribuição angular aleatória e isotrópica, sem relação entre as posições angulares sucessivas. Porém, os flashes observados desenham uma trajetória radial,  essencialmente reta. Como explicar isso na base da função de onda? A resposta foi dada, ainda na década de 1920, pelo físico britânico Nevill Mott [2]. Ele enfatizou que, para um raciocínio correto, é necessário considerar a função de onda, não apenas da partícula α, mas do sistema total, constituído da partícula α e de todos os átomos do material detector. Não se trata de uma função propagando-se no espaço tridimensional usual, e sim no espaço de configuração de todo o sistema. Se o detector for composto de N átomos, tal espaço possui dimensão 3(N+1). Nevill Mott considerou o caso de dois átomos apenas (N=2), suficiente para compreender o fenômeno. Analisando as soluções da equação fundamental satisfeita pela função de onda, a equação de Schrödinger, ele demonstrou que, na componente da função de onda que corresponde à excitação do primeiro átomo, a probabilidade de presença da partícula α está concentrada num cone estreito com eixo alinhado com a direção radial em relação ao núcleo emissor. Assim, o segundo átomo terá probabilidade significativa de ser excitado, apenas se ele estiver localizado nesse cone. O argumento poderia ser repetido com mais átomos e, assim, entende-se porque a trajetória da partícula é essencialmente reta.

O segundo ponto que será considerado aqui diz respeito à afirmação, contida na pergunta, de que “ondas de probabilidade refutam a existência de trajetórias”. Além da inquestionável observação de trajetórias através da interação com um aparato (como na discussão acima), pode-se perguntar se é possível conceber a trajetória de uma partícula quântica, mesmo quando ela não está sendo observada. A interpretação usual da mecânica quântica responde pela negativa mas, dentre as interpretações alternativas discutidas na literatura científica, no mínimo uma oferece uma resposta positiva. Trata-se da — assim chamada — interpretação da onda piloto [3], proposta, no inicio do desenvolvimento da mecânica quântica, por Louis de Broglie, e desenvolvida nos anos 1950 por David Bohm. Nessa interpretação, a velocidade de uma partícula num dado instante é calculada a partir da função de onda. A indeterminação na trajetória de uma partícula deve-se meramente à imprecisão no conhecimento da sua posição inicial.

No caso do famoso experimento da fenda dupla, um experimento dedicado à determinação das trajetórias médias seguidas pela partícula (no caso, um fóton) foi apresentado na literatura e está comentado em mais detalhes na resposta a outra pergunta feita ao CREF [4]. É interessante notar a semelhança entre as trajetórias apresentadas nesse trabalho e aquelas previstas pela interpretação da onda piloto.

Porém, há na literatura uma interessante controvérsia relativa à forma das trajetórias, quando inclui-se no experimento um dispositivo capaz de determinar por qual fenda a partícula passou. Conforme a análise bem conhecida, nesta situação a figura de interferência é apagada e há apenas difração da onda de probabilidade pela fenda atravessada. As possíveis trajetórias deveriam ser essencialmente retas oriundas da fenda em questão, mas diversamente inclinadas por causa da difração. Sobre uma tela colocada a uma distância suficiente do anteparo com as fendas, deveriam ser então observados, ocasionalmente, impactos no meio-plano oposto à fenda. Por exemplo, mesmo se a partícula passou pela fenda superior, ela deveria ocasionalmente incidir sobre a metade inferior da tela. É, de fato o que se observa experimentalmente, mas o cálculo das trajetórias segundo a interpretação da onda-piloto parecia fornecer um resultado diferente: a trajetória de uma partícula observada na meia-tela inferior teria que passar necessariamente pela fenda inferior, mesmo quando o dispositivo dedicado a determinar qual fenda foi atravessada indicasse a fenda superior. Esta situação levou alguns físicos a caracterizar como “surreais” as trajetórias previstas pela teoria da onda piloto. Os defensores dessa teoria argumentaram que seria necessário explicitar a natureza do sistema utilizado para determinar qual fenda a partícula atravessa pois, em qualquer sistema quântico, há apenas uma função de onda que depende das posições de todas as partículas e, na teoria da onda piloto, a velocidade de uma partícula depende das posições de todas as demais, inclusive aquelas cuja interação com a partícula em questão se deu no passado.

Recentemente, foi publicado um artigo que relata um experimento bastante engenhoso no qual um segundo fóton é utilizado como dispositivo para determinar o caminho seguido pelo primeiro [5]. Os dois fótons estão produzidos num estado de spin “emaranhado” e o feixe do primeiro fóton é separado em duas componentes conforme o seu estado de spin. Desta maneira o estado de spin do segundo fóton está correlacionado com o caminho seguido pelo primeiro fóton e pode-se medir a polarização do segundo fóton para obter informação sobre qual caminho (qual “fenda”) o primeiro seguiu. Concomitantemente, determina-se a trajetória do primeiro fóton pelo procedimento mencionado acima e explicado na referência [4]. Assim, verifica-se, de fato, a existência de trajetórias “surreais”, mas explica-se a existência das mesmas a partir da não-localidade característica da mecânica quântica: apesar de os dois fótons estarem em regiões distantes do aparato, a trajetória do primeiro fóton depende da medida de polarização realizada sobre o segundo fóton e, reciprocamente, o estado de spin deduzido para o segundo fóton depende da posição do primeiro fóton.

Em resumo, independentemente de interpretação, é possível deduzir da mecânica quântica a formação de trajetórias de partículas como sucessões de eventos em dispositivos de detecção. Já a conceituação da trajetória de uma partícula como função contínua, bem definida a cada instante, é possível na interpretação da onda piloto, mas é imprescindível levar em conta a não-localidade fundamental da mecânica quântica para evitar o surgimento de paradoxos.

 Referências

[1] Michel E. M. Betz, Determinando simultaneamente posição e momento além do que permite o Princípio da Incerteza de Heisenberg? Resposta a pergunta do CREF- IF-UFRGS.

[2] Neville F. Mott, The wave mechanics of  a-ray tracks, Proceedings of the Royal Society, A126, p.79 (1929).

[3] Michel E. M. Betz, Elementos de mecânica quântica da partícula na interpretação da onda piloto, Revista Brasileira de Ensino de Física, 36, p. 4310 (2014).

[4] Magno V. T. Machado, Experiência da dupla fenda. Resposta a pergunta do CREF-IF-UFRGS.

[5] Dylan H. Mahler, Lee Rozema, Kent Fisher, Lydia Vermeyden, Kevin J. Resch, Howard M. Wiseman, Aephraim Steinberg, Experimental nonlocal and surreal Bohmian trajectories, Science Advances 2, e1501466 (2016).

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